Quimeras

    Por muito tempo estive preso na inércia da estagnação. Na mesmice da impossibilidade de ação, rondei meus próprios assombros e os desafiei. Descobri e digo sem medo: escrever é uma questão de segurança. Agora, olho-me no espelho e suplico: jamais deixe a insegurança te amordaçar. Não permita que os pesos da dúvida te sirvam de grilhão. Escrever liberta: dá asas, se me permite o clichê. É um ato que nos enche os pulmões de coragem, mas que, antes, demanda certa valentia. Requer que você vá de peito limpo e cara lavada e imponha suas palavras ao mundo, sejam elas sóbrias ou poéticas. Os bloqueios que te barram são monstros de suas próprias inseguranças que devoram sua voz. Você não é suas próprias fraquezas; não admita que elas te alienem de si mesmo. Abatamos quimera por quimera com as navalhas afiadas das palavras.

O ontem de amanhã

    Observo uma foto envelhecida de um teórico russo qualquer. A foto é inteiramente constituída de tinta preta, desbotada pelos anos e pela tecnologia limitada do começo do século XX. Seja pela distância temporal que nos separa ou mesmo pelo aspecto impassível, quase impessoal, ele sequer parece humano. E então, olhando o passado de cima para baixo, constato uma verdade óbvia, camuflada nas causalidades e na arrogância de quem se vê "na ponta da história": um dia estarei em seu lugar. Não tardará para que um jovem, habitante de uma realidade que tomará lugar em cem, duzentos anos, olhe minhas fotografias com esta mesma estranheza. "Como eram ingênuos os que viviam no século XXI, que se achavam detentores de uma tecnologia de ponta. Que pessoas diferentes! Eram elas dotadas dos mesmos sentimentos que eu? Como elas concebiam o mundo, senão de forma limitada?"
    E mesmo esses, que me parecem tão ofuscados pela nuvem do inimaginável quanto eu próprio o era para o russo que observei há pouco, decerto um dia parecerão empoeirados, cegos pelo cabresto de seu próprio tempo. Sequer humanos.
    Quanta humanidade já não habitou e habitará este planeta, em sua intensidade e calor plenos? Quantas sensações não foram enterradas com os anos, incapazes de serem retratadas nas fotografias e pinturas? Pois mesmo por meio das mais densas artes, como a escrita, não é possível aprisionar uma pessoa e reservá-la à eternidade. Nos dissolvemos a todo instante. Em pouco tempo, o que restará de nós serão nossas inscrições no mundo, cada qual responsável por registrar apenas uma face de nossas tantas faces. Talvez seja daí que os humanos retirem essa gana de produzir o diverso: música, filosofia, arquitetura, literatura — tudo isso não passa de uma forma refinada de lutar contra a morte, mesmo que em vida. Uma tentativa incessante, tão profunda e desesperadamente humana, de resistir. De existir.

Escape


    Chega um certo momento em que a mente, tumultuada e ansiosa, só consegue ser exprimida em termos poéticos. Mas o que será de nós, reles mortais, que sabemos fazer poesia tão bem quanto andar de monociclo? Tentar, e recair no ridículo? Pois ainda que ninguém se importasse, nosso próprio julgamento será sempre o mais forte. Estamos então fadados ao silêncio? Ao afogamento de si em si? Sucumbiremos ao tédio, deixando que o ócio nos consuma por dentro?
    Já não sei. Um fluxo que extravasa não encontra limites, motivo ou solução. Um fluxo que escapa à compreensão até de si mesmo está irremediavelmente prometido ao descaso da multidão. Mas que pode nos oferecer a multidão, senão uma repressiva vigilância ou um solitário silêncio, como um Estado que pune mas não ajuda? Talvez a ausência seja mesmo mais cruel que a presença, pois não há com quem gritar; não há a quem culpar senão a nós próprios.
    Mas isso tudo é tolice. Pensar demais é a receita perfeita para o bloqueio. Uma estagnação sem precedentes que se nutre da enorme leva de pensamentos e possibilidades, sem real previsão de concretude. O tempo escapa aos dedos e a capacidade se dissolve em nossas próprias inseguranças. A disposição, encarregada de nos fazer levantar, foge quando é chamada. Debaixo do cobertor é sempre melhor; parece o esconderijo perfeito, onde nem o frio e nem o peso das expectativas nos encontram. Pena não ser possível escaparmos de nós mesmos.

Amarras

    Recentemente, criei um miniblog chamado Fluxo, cuja proposta é a de expor meus textos menos comprometidos com a racionalidade crua, mais afeitos a formas artísticas de escrita e principalmente mais pessoais. No entanto, após escrever um pouco lá, fui acometido pela percepção de meus motivos implícitos. Pense comigo: se tive a necessidade de separar aqueles textos dos que costumo postar aqui no Meu mundo, minhas palavras, significa que, por algum motivo, não me sentia confortável em escrever em meu blog principal textos que não fossem estritamente lógicos ou formais. Com efeito, a tendência que fui criando sem perceber foi a de uma certa impessoalização deste espaço, quase furtando-lhe de si mesmo. É bem verdade que já há alguns anos venho postando esporadicamente prosas poéticas aqui, mas devo admitir que considero todas elas muito mornas e tímidas, quase como se estivessem constrangidas pela possibilidade de não serem compreendidas pelo público. Talvez por isso, ou mesmo talvez pela falta de maturidade textual, meus escritos mais antigos sejam tão carregados de uma roupagem de pretensa formalidade. Não falo de uma formalidade como a que permeia estas palavras de agora, que se dão mais como um verniz espontâneo do que como uma obrigação prática, mas uma formalidade que amordaça, que aprisiona.
    Este é, portanto, o primeiro passo para fora das grades que acabo de romper. Isso não significa que os próximos textos serão todos de ordem pessoal e descontraída, necessariamente; significa, justamente ao contrário, que tentarei evitar padrões textuais que enclausurem minha liberdade de escrita. Não pretendo tampouco interromper o Fluxo; continuarei alimentando-o com ideias que venham a surgir de minhas constantes tempestades mentais; porém, este blog principal também será palco eventual para esses pensamentos, sobretudo os que tiverem uma coesão semelhante a monólogos. Daqui em diante, não me pautarei por uma inércia que por tanto tempo me calou.

Do céu e da guerra

    A música me fortalece. Dela retiro o sustento de meus ossos e a força que me mantém em pé, fazendo-me caminhar em frente, sempre de cabeça erguida para contemplar os céus e recuperar a beleza das estrelas que nos foi roubada pela modernidade febril. O céu! O mesmo céu que durante milênios ensinou à espécie humana o que significava ser magnânimo, intangível, intransponível! Que nos lembrava da nossa pequenez pueril, da nossa imersão irremediável no fundo do abismo de Gaia!
    1969. Tudo mudou. Atravessamos os ares, mergulhamos no vácuo do negrume infinito e nos abrigamos forçosamente na timidez da Lua. Ela, que antes se isolava em seu próprio esplendor curioso, tinha agora sua privacidade invadida por pés galopantes e sua virgindade violada por bandeiras de nações distintas, egoístas, perdidas na briga tola de egos insignificantes. Fez-se a guerra. Banhou-se de sangue territórios inteiros, terras de ninguém, a mando dos poderosos que se deliciavam em seus charutos de grife.
    E assim se ergueu a humanidade: sob a música, que erigiu povos e amores, tida como estupidez vaidosa, e sob a ganância por cifrões vazios vistos como o bem necessário ao progresso. Amém?