O ontem de amanhã

    Observo uma foto envelhecida de um teórico russo qualquer. A foto é inteiramente constituída de tinta preta, desbotada pelos anos e pela tecnologia limitada do começo do século XX. Seja pela distância temporal que nos separa ou mesmo pelo aspecto impassível, quase impessoal, ele sequer parece humano. E então, olhando o passado de cima para baixo, constato uma verdade óbvia, camuflada nas causalidades e na arrogância de quem se vê "na ponta da história": um dia estarei em seu lugar. Não tardará para que um jovem, habitante de uma realidade que tomará lugar em cem, duzentos anos, olhe minhas fotografias com esta mesma estranheza. "Como eram ingênuos os que viviam no século XXI, que se achavam detentores de uma tecnologia de ponta. Que pessoas diferentes! Eram elas dotadas dos mesmos sentimentos que eu? Como elas concebiam o mundo, senão de forma limitada?"
    E mesmo esses, que me parecem tão ofuscados pela nuvem do inimaginável quanto eu próprio o era para o russo que observei há pouco, decerto um dia parecerão empoeirados, cegos pelo cabresto de seu próprio tempo. Sequer humanos.
    Quanta humanidade já não habitou e habitará este planeta, em sua intensidade e calor plenos? Quantas sensações não foram enterradas com os anos, incapazes de serem retratadas nas fotografias e pinturas? Pois mesmo por meio das mais densas artes, como a escrita, não é possível aprisionar uma pessoa e reservá-la à eternidade. Nos dissolvemos a todo instante. Em pouco tempo, o que restará de nós serão nossas inscrições no mundo, cada qual responsável por registrar apenas uma face de nossas tantas faces. Talvez seja daí que os humanos retirem essa gana de produzir o diverso: música, filosofia, arquitetura, literatura — tudo isso não passa de uma forma refinada de lutar contra a morte, mesmo que em vida. Uma tentativa incessante, tão profunda e desesperadamente humana, de resistir. De existir.