É provável que o título deste texto tenha chocado algumas pessoas, a princípio. Sim, porque muito embora seja de amplo conhecimento de todos que de alguma forma fazem parte de minha vida em Curitiba, nunca cheguei a dizer nada "oficialmente" nas redes sociais. Mas, tendo começado uma nova vida, e tendo decidido a partir de então que não viveria mais sob máscaras, já está na hora de discorrer sobre isso publicamente.
Confesso que não é fácil escrever esse texto. Não por ter algum problema em falar sobre isso — pelo contrário, gosto quando as pessoas quebram o tabu e se interessam, perguntam —, mas por ser algo tão íntimo que é, como costumamos dizer no Grupo Paulo Leminski, uma verdadeira nudez literária. Sim, este é um tema universal que, ainda bem, está em alta nos últimos anos, mas é também um assunto extremamente pessoal e é inevitável sentir-me no ápice de minha vulnerabilidade quando exponho algo tão... meu ao público. Escrever estas
palavras me soa como uma curiosa mescla entre a reafirmação da força própria que
há em me manter em pé enquanto o mundo tenta me derrubar e, ao mesmo
tempo, um marco após o qual estarei vulnerável ao que as pessoas
irão pensar. Mas se a preocupação do pensamento alheio nos impedisse de
fazer algo, seria melhor termos ficado na barriga de nossas mães. Sinto que é preciso agora dar a cara a tapa e afirmar-me enquanto gay, sem o medo que me assolou por tantos anos durante a adolescência.
É quase como alguém que se esconde numa caverna por muitos anos e, quando dela sai, estranha a luz do dia. Pode parecer um exemplo um pouco dramático, mas é aquilo: o problema do outro é sempre drama, até você sentir na pele. A alteridade requer um certo esforço. É algo que geralmente as pessoas não conseguem conceber; principalmente as que nunca precisaram esconder algo intrínseco a si mesmo até das pessoas mais próximas. É um constante sentimento de que você está fazendo — e, mais importante: sendo — algo errado, moralmente reprovável, mesmo não tendo escolhido aquilo. Viver um segredo é carregar nos ombros um peso que só piora a cada dia.
Em Curitiba, então, não há o que se falar: me assumi desde o primeiro dia de aula e faço questão de não me esconder para ninguém. Absolutamente todas as pessoas que fazem parte de meu convívio me aceitam melhor do que eu poderia um dia imaginar e, inclusive, nunca fizeram qualquer distinção quanto a isso. Tenho amigos indizivelmente maravilhosos e até mesmo os que são "apenas conhecidos" me respeitam de uma maneira que eu não conseguiria descrever aqui em palavras. Até agora, não senti discriminação sequer uma vez, pelo menos não direta. É claro que isso provavelmente se dá por eu i) estar numa capital, onde a mentalidade popular via de regra é mais progressista, ii) estar no meio acadêmico, que, conforme um querido amigo e professor do ensino médio costumava dizer, é uma verdadeira "bolha" e, finalmente, iii) fazer parte de determinados grupos sociais com reconhecidos privilégios, sendo homem, branco e de classe média.
Contudo, não se engane o leitor: nem todos têm a sorte de passar pelas mesmas circunstâncias "leves" de aceitação que eu. Uma rápida olhada em qualquer portal de notícias basta para ver que a maior parte das histórias de pessoas que se descobrem gays terminam com rejeição familiar, espancamento parental, expulsão do lar e, muito frequentemente, suicídio. Os termos podem parecer brandos, mas as condições às quais estas pessoas são submetidas não o são.
Os tempos são outros e a situação está mudando para melhor, sim. A comunidade LGBT está adquirindo seus direitos civis aos poucos, a mídia está dando visibilidade (sem os frequentes estereótipos satirizados) a essas questões e, sim, a aceitação é mais frequente do que era há algumas décadas. As novas gerações já não repetem mais as mesmas baboseiras de séculos passados e são, como acredito, a esperança para um futuro mais tolerante. No entanto, e este é um enorme "no entanto", isso não significa em momento algum que esteja tudo a mil maravilhas. Simplesmente por amarem pessoas de mesmo sexo ou por possuírem gênero diferente do biológico, pessoas ainda são brutalmente assassinadas. Perceba que a questão não é apenas meramente estatística, como alguns podem argumentar ("Ah, mas pessoas de todas as orientações sexuais morrem todos os dias"), mas que suas vidas estão sendo ceifadas exclusivamente pelo fato de serem LGBT. Milhares de pessoas que gostam de Nutella morrem todos os dias, claro, mas elas não são assassinadas porque gostam de Nutella. É um exemplo bobo, eu sei, mas didático.
É aí que passa a importar a parte em que eu disse, em parágrafos anteriores, que não senti discriminação direta. Ainda que hoje eu tenha me aceitado completamente e seja respeitado numa plenitude impressionante por todos que me rodeiam, é impossível não me sentir agredido indiretamente. Deveria ser óbvio, mas aparentemente não é: violência não é apenas física. Homofobia não é apenas bater em pessoas por sua orientação sexual; cada vez que alguém vai nos comentários do amigo e comenta "que gay", reforça a ideia já fortíssima de que ser gay é algo ruim, digno de vergonha. Por isso há tamanha importância em afirmar-se como gay e ter orgulho disso; não como maneira de "achar-se melhor que os outros", como pregam páginas ridículas como "Orgulho de ser hétero" ou "Orgulho de ser branco", mas como reafirmação da própria existência. É gritar aos quatro ventos: "Sim, eu sou gay! Por que isso seria um problema?" É por esses motivos que todos nós podemos e devemos fazer um tiquinho de esforço para repensar o que usamos como ofensa, pois uma mera palavrinha pode estar carregada de sangue. Sangue do seu filho, sangue do seu melhor amigo, sangue do seu colega de trabalho. Sangue humano.