Aborto — uma questão de democracia


     Dentre os inúmeros assuntos polêmicos, encontra-se no topo da lista um tópico que de tanto ser utilizado como tema de debates, tornou-se um pouco clichê: a legalização do aborto. A grande causa dessa banalidade é uma falha bastante comum constatada na argumentação de ambos os lado. Todos os argumentos são baseados em raciocínios circulares (que usam diferentes princípios mas que sempre levam ao mesmo ponto). Além disso, algumas pessoas se concentram tanto em vencer o debate que apelam para as ofensas e outros tipos de falácias. Deste modo, a discussão perde seu objetivo primordial: convencer o interlocutor a aderir (ou pelo menos entender) seu posicionamento em relação a determinado assunto, e acaba virando um ringue de luta.
     Antes de mais nada, é necessário entender que questão do aborto é relativa, ou seja, é um pensamento que varia de pessoa para pessoa. Sendo assim, é de extrema importância chegar em um consenso entre as pessoas - o que só pode ser feito através da democracia. Uma vez que assumimos essa postura democrática, devemos descartar quaisquer argumentos baseados em crenças, pois evidentemente, a laicidade do Estado é algo indispensável para o desenvolvimento e para o funcionamento da democracia.
    É comum encontrarmos pessoas que usam o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 — a inviolabilidade do direito à vida — para justificar seu respectivo posicionamento contra a legalização do aborto. Porém, as leis (tanto os direitos quanto os deveres) só podem ser aplicadas aos cidadãos, e considerar — ou não considerar — um feto um cidadão, é uma questão meramente conceitual. Se formos partir da premissa de que todo feto é indiscutivelmente um cidadão pois é uma vida em potencial, então um espermatozoide também seria.
    Desta maneira, é preciso entender que a concepção que define a partir de quando um feto é considerado um cidadão é certamente muito relativa. Sendo assim, a única solução sensata de se definir este conceito seria de uma forma universal, no caso, a científica. E como a ciência não ainda não foi capaz de se posicionar firmemente em relação a isso (sem que caia na questão da vida "em potencial), não há bases concretas para afirmações absolutas, tais como as que dizem respeito aos direitos do feto.
     O problema dos dias atuais é o constante achismo. É preciso entender que, constitucionalmente falando, meu ponto de vista — seja ele qual for — é irrelevante, pois o mesmo é baseado em preceitos individuais. A construção e o aprimoramento da legislação consiste em um pensamento da sociedade como um todo, baseado em definições concisas e universais, e não guiada pelos achismos de determinados grupos religiosos.
"Uma coisa é um indivíduo pensar que ele é o dono da verdade. Outra coisa é quando isso constrói mecanismos de grupos sociais para impor essa verdade sobre os outros."
— Cesar Goes, sociólogo e professor da UNISC disse recentemente em uma entrevista.
     E se tratando do argumento de que o aborto deve ser proibido com base na opinião da maioria dos brasileiros, que associa-se erroneamente à democracia, é fundamental lembrar que, e
mbora pressuponha-se que ela [a democracia] seja a vontade da maioria, sua função elementar é, na verdade, defender também a minoria, já que esta última é um dos pilares que sustentam o processo democrático. Se atribuirmos às leis a vontade da maioria popular, aniquilaríamos a democracia e sua essência.
     Para concluir, seria interessante ratificar algo que as pessoas costumam, inconscientemente, cometer um equívoco. Legalização não é sinônimo de obrigação. Do mesmo jeito que o cigarro é legalizado e você não é obrigado a fumar, caso o aborto seja legalizado, ninguém será obrigado a fazê-lo.
     Após analisarmos tudo isso por um ponto de vista imparcial, está claro que há muito o que evoluir em um país que, mesmo sendo supostamente democrático, os preceitos individuais de senso comum e de crença dos governantes prejudicam toda a sociedade. E essa evolução só irá acontecer a partir do momento em que a laicidade do Estado sair da teoria e ser de fato aplicada às decisões legislativas.

"A maior beleza da democracia é a possibilidade de convivência harmoniosa entre pessoas que pensam de maneira diferente." (Luís Roberto Barroso)