— CRÔNICA —

Vestibulando

    O despertador toca. Só mais cinco minutinhos. Dez. Vinte. Acordo meia-hora depois. Quer dizer, meu corpo acorda, pois minha mente permanece num curioso estado de semi-consciência por vários minutos. E ainda há quem não acredite em zumbi. Pfff!
     Antes de sair, bate aquela sensação de que você está esquecendo alguma coisa, embora não saiba exatamente o quê. Lá vamos nós checar a bolsa. Material com o peso equivalente ao de um saco de cimento, confere; estojo com miniatura do Darth Vader e uma mini-picareta de Minecraft, confere (se você matou sua criança interior, não espere que todos o façam); cadernos, confere; Nesfit, confere. A propósito, sou a favor de que todo estudante receba Bolsa Nesfit ou algo do tipo, porque olha... não é fácil. Enfim, tudo em ordem.
    Ao chegar na sala de aula dou bom-dia à meia dúzia de gato pingado que fica ali em clima de velório antes de começar a aula. Às vezes me incluo nesse grupo, diga-se de passagem. Na cantina do cursinho algumas pessoas falam alto, tomam café, riem; isso geralmente ajuda a despertar. O sinal toca, aquela música irlandesa de novo, pra variar. Se eu ouvir mais uma vez, juro que mato um.
    Abro o caderno e pauso a caneta sobre o espaço de colocar a data. Que dia é hoje? "Você não lembra nem o que comeu ontem e quer lembrar a data?", caçoa meu id. O superego ainda não havia acordado, provavelmente.
    Mesmo quando o dia não é dos melhores, faço aquele esforço para me manter acordado nas primeiras aulas. Primeiro por necessidade e segundo por uma pontinha de culpa que bate quando os estudos são negligenciados. Meu olho fecha e a imagem do concorrente asiático estudando vem à mente. Cafeína em forma de pressão psicológica. Estou certo que os estudantes que partilham dessa neurose me compreenderão.
    "Segue o jogo!", diz um certo professor. Intervalo, aula, intervalo, aula. Os ponteiros alinham-se ao um e ao doze. Perdoem-me pela gordice, mas é a hora mais esperada do dia. No trajeto para o restaurante, tudo pode acontecer. Meus amigos são testemunhas do dia em que um mendigo me parou dizendo: "Excuse me" e balbuciando mais alguns grunhidos indistinguíveis; ou quando um senhor não muito sóbrio me perguntou onde ficava a Rodovia Anhanguera, pois precisava pegar um táxi para ir de caminhão até Brasília (?) e, percebendo que eu não poderia ajudá-lo, despediu-se e me aconselhou a não falar com estranhos, sendo ele próprio um estranho. Isso sem mencionar a interrupção brusca por uma velhinha que requisitava ao balconista uma pamonha de queijo. Não a culpo; talvez pamonhas de queijos sejam como as coxinhas, remédios para crises existenciais.
    O almoço também é um tanto quanto insano; reflexões com dois amigos (ambos prestando cursos de exatas) sobre quanto seria zero elevado a menos um, ou quanto seria infinito menos um. Dizem que levar a vida menos a sério, mais na esportiva, ajuda na digestão. Não na digestão dos alimentos, e sim na da própria vida.
    Mais algumas aulas e então rumo à sala de estudos. Todos estudando exatas ou biológicas. Por que as matérias de Humanas são sempre excluídas no cronograma de estudos? É mais fácil ver um político cumprindo suas promessas do que ver alguém além de mim estudando Filosofia.
    Fones no ouvido, Spiegel Im Spiegel no máximo, marca-texto em mãos. Uma caixa de marca-textos como presente de aniversário não cairia nada mal, vale pontuar. Apostila aberta. Como resolve esse exercício? Será que se eu fizer a semelhança do BCA com o DEF... Não. E por lei do ângulo externo? Aí eu isolo o alfa e... Consegui! Uma amiga vem me perguntar meia hora depois como faz e eu não lembro. A memória de um peixe dourado novamente manifestando-se com vigor.
    Um pouco de conversa nos pufes. Um dos poucos momentos de socialização do dia. De resto, dispenso comentários. Tinha razão um outro professor quando disse que, se sua vida social vai bem, algo vai muito errado com seus estudos.
    Paralelamente às matérias, ler as páginas diárias dos dois livros conforme o programado. Acredite se quiser: é possível aprender sobre latossolo e Durkheim num mesmo dia. Se tudo correr bem, antes de novembro os termino. E lá vão mais três litros de marca-texto. Uma consulta básica no Wikipédia, um breve e consequente devaneio nas imagens dos castelos de Luxemburgo. Preciso conhecer esse lugar.
    Consulto o relógio. Quase sete horas. Já? Consulto o celular, só para confirmar. Trinta e oito chamadas perdidas. "Mãe." Ok, foram apenas seis chamadas perdidas, mas o exagero aqui é justamente para mostrar como me senti na hora. Arrumo o material correndo e entro no carro, para não me atrasar ainda mais.
    As poucas horas restantes da noite não são muito produtivas. São bem insuficientes, eu diria. Minha irmã foi feliz em sua colocação ao dizer que o dia seria melhor com mais horas. O banho, a consulta ao Porta dos Fundos e aquela revisada rápida em alguma matéria que não absorvi bem. Acho que vou d...
    Só mais cinco minutinhos.

O Brasil e sua putrefação política

    Chutemos a etiqueta e a polidez para escanteio: brasileiro tem nojo de política. Sua animação em ano de eleição é a mesma de alguém que se casa pela vigésima vez após ter sido traído em seus dezenove matrimônios anteriores. As mesmas promessas vagas, o mesmo cinismo, o mesmo comprometimento que não tarda a cair por terra com impressionante efemeridade.
    Não se trata nem de uma questão partidária. No Brasil, não há esquerda e nem direita. Até os partidos que já fizeram parte de fortes reivindicações sociais, hoje já perderam seu compromisso com a ideologia. Esta já não vale mais de nada; é facilmente comprada. O Ministro Joaquim Barbosa foi muito feliz em sua colocação quando disse que em nosso país há somente "partidos de mentirinha". O PT da época das greves sindicais do ABC Paulista se envergonharia caso visse a postura de alinhamento à Bancada Ruralista que o partido tomou na última década de governo. O mesmo vale para o PSDB, cujos líderes tiveram profundas raízes políticas com a UNE e com o MDB, e que hoje tem sua integridade reduzida a pó. Essas duas menções são apenas a título de exemplo, mas a situação não é muito diferente para o restante dos partidos. Cabe aqui, portanto, o que Aristóteles cunhou como fronesis: saber distinguir com prudência o que diz respeito à ideologia, portanto à teoria, do que está relacionado à prática. É preciso que guiemos a discussão sob a luz desta última.

    Comecemos então pelo mais óbvio: a corrupção. Todas as esferas, desde a municipal até a federal, passando inclusive pelos três poderes, estão entupidas de parasitas do dinheiro público. Isto pode ser inferido não somente pela unanimidade popular como também por cinco segundos de reflexão. Como pode um país arrecadar aproximadamente R$ 55.000 por segundo[1] em impostos e ainda prover serviços públicos de tamanha precariedade? O retorno que a população recebe é ridículo. Para onde vai todo esse dinheiro? Evapora?
    Está presente nas entranhas da máquina estatal de nosso país uma versão monstruosamente ampliada do "jeitinho brasileiro de ser". Embora a essência seja justamente esta, a desonestidade aqui não reside em cortar filas; quando nos referimos ao cenário político, ela é estrutural. É tudo de uma torpeza crônica nauseante: lavagem de dinheiro, manobras eleitorais que não passam de uma nova espécie de coronelismo, nepotismo, concessões irregulares e imparciais, e assim por diante. Chega a ser difícil acreditar que os responsáveis pela conjuntura política consigam ser tão ignóbeis a ponto de, mesmo diante da podridão do sistema, deitar a cabeça no travesseiro e dormir de consciência limpa.
    Sem mencionar a descarada ironia presente em nosso Legislativo. Partidos têm a pachorra de se intitularem como Democratas (DEM) ou Partido Progressista (PP), estando estes ligados à ARENA do Regime Militar de 64. A pateticidade não para por aí: colocar um pastor abertamente homofóbico na Comissão dos Direitos Humanos equivale, em níveis de coerência, a permitir que Adolf Hitler presidisse uma Comissão de Defesa aos Judeus.
    Os grandes veículos midiáticos — denominados por muitos o Quarto Poder, tamanha a sua influência na sociedade — são, no melhor dos casos, cúmplices. A população não tem voz; quando tem, como foi o caso nas manifestações de junho de 2013, é completamente desarticulada. Não mantém objetivos claros e concretos; em vez de reunir-se em torno de uma proposição legal específica, como o PL 480/2007, foca-se em reivindicações tão genéricas quanto as promessas eleitorais. Cartazes com dizeres como "QUEREMOS EDUCAÇÃO" só hão de ser levados a sério pelos governantes se soubermos como e sobretudo de quem exigir.
    Ademais, a única coisa capaz de alimentar as esperanças de um povo deixado às minguas seria uma drástica reforma política. O voto compulsório, o mecanismo de aliança de candidatos (chapas eleitorais), os sistemas de representatividade verticais e indiretos, o financiamento empresarial a candidaturas, e muitos outros pontos precisariam ser revistos. Pautas como essas dão margem para muita discussão, e seria crucial para a consolidação de uma verdadeira democracia se os brasileiros pudessem tomar parte no assunto e sentir-se engajados com a política.
    Não é um presidente, um governador ou um deputado que vai diminuir o abismo que existe entre a população brasileira e a política, sobretudo da noite para o dia. Ainda há esperança, porém não num cenário carregado de estagnação e conformismo. Resultados frutíferos só ocorrerão se houver conscientização do cidadão brasileiro, no sentido de ser menos complacente com o status quo e exigir mudanças sérias.