Coisas

    Muitas vezes, as coisas da vida podem não ser lá muito agradáveis. Não gosto, por exemplo, de pessoas que teimam em levar seus bebês a determinados eventos. Neste caso, a Lei de Murphy por si só já garante que estes mesmos bebês chorarão justamente nos momentos mais importantes, como numa sessão solene. Não gosto tampouco dos cachorros das casas vizinhas que latem de forma tão incessante a perder o fôlego e, não se contentando com isso, nos fazem perder o sono, nem de vendedores que passam longos minutos fazendo propaganda e insistem em "enrolar" o máximo possível antes de finalmente dizer o valor do produto. Acho peculiarmente infeliz a mania que algumas pessoas possuem de Escrever Cada Palavra Com A Inicial Em Letra Maiúscula. Não gosto de gente que exige respeito através do medo. Não gosto de desinformação, nem de "achismos" e muito menos de preconceito disfarçado ("Não tenho nada contra, mas...").
    Não suporto buzinas. Além de inúteis — pois na imensa maioria das vezes já sabemos que estamos atrasados —, elas só fazem é aumentar ainda mais o desespero e a irritação. Elas são a representação sonora da impaciência do século XXI.
    Não. Eu gosto é de pessoas espontâneas, de conversas autênticas, de coisas que me façam sorrir. Gosto de aromas que tragam consigo lembranças, e de sabores para fechar os olhos e aproveitar cada mastigada. Gosto de falas pausadas, de palavras em uma tranquila sintonia, de tempo para ler e respirar. Gosto de participar de conversas paralelas durante o almoço de domingo com a família, e também gosto de ouvir o silêncio noturno quebrado somente pelo cri cri dos grilos. Gosto de comer sem culpa, de ler na varanda, de fechar os olhos e apreciar a inabalável beleza do luar em forma de som. Gosto de coisa descomplicada, de prosa corrida e principalmente despretensiosa, como esta aqui.

Humor às avessas

    Uma coisa é fato: o humor que vemos hoje e o de algumas décadas atrás são extremamente distintos. O atual perdeu quase completamente aquele espírito de Os Trapalhões, de Mazzaropi. Com exceção de um ou outro programa como Zorra Total, é ácido e um tanto quanto controverso.
    Talvez um dos principais motivos que fazem com que o assunto divida tanto as opiniões seja o fato de que as comédias que mais fazem sucesso, em especial as do tipo stand-up, adquiriram uma natureza que vai além do caricato tradicional a personagens fictícias. Agora, elas trabalham de modo a atacar pessoas reais de uma maneira particularmente agressiva, baseando a acidez da crítica humorística, na maioria das vezes, a características como etnia, porte físico, orientação sexual, nacionalidade — e até regionalidade, como é o caso das piadas de gaúchos e nordestinos — e assim por diante.
    A explicação, segundo Idelber Avelar, um conceituado professor de literatura1, é que "a piada preconceituosa se ancora em determinados valores solidificados na sociedade". Ele completa, ainda, que este é o humor fácil, pois estas ideias já estão montadas na mentalidade popular.
    O mais assustador, porém, é que este tipo de humor faz sucesso. Isso porque, como diz Laerte, ele [o humor] "dialoga com o preconceito das pessoas". Inclusive, muitos veem nas piadas uma bela oportunidade para mascarar pensamentos grotescamente desumanos, na tentativa de fazer com que eles pareçam naturais. A infeliz fala de Rafinha Bastos de que "o estupro às mulheres feias não deveria ser encarado como crime, e sim como um favor", por exemplo, exterioriza a ideia que, sinto dizer, uma considerável parcela da sociedade brasileira possui. Além de não ser sequer engraçado.
    Chega a ser patética a performance de algumas pessoas que, na busca incessante de fazer comédia custe o que custar, atropelam o bom senso e ignoram até mesmo a mínima dignidade humana. Um claro exemplo disto é a Marcela Leal que, com seu "humor", ridicularizaria até mesmo a própria avó se isso arrancasse algumas risadas constrangidas da plateia.

    Não estou propondo impor limites severos aos artistas que trabalham neste segmento. Isto seria pura censura, e não precisamos de mais uma ditadura manchando a história da democracia brasileira. A liberdade de expressão é importante — e como é! No entanto, isso não significa que as pessoas devam ter carta-branca para humilhar e discriminar livremente umas às outras. Você pode muito bem, por exemplo, ter a opinião de que os negros são inferiores aos brancos. Você tem todo o direito de ser um grande babaca. O que você não pode, porém, é disseminar suas ideias arcaicas como se isso fosse correto, sem arcar com as consequências. Seus direitos acabam quando começam os do próximo.
    Alguns podem contra-argumentar dizendo que é preciso combater não as piadas, e sim as realidades que estão por trás delas. Ora! Essa dissociação não se justifica, pois estas duas coisas não são distintas em nível algum! Pelo contrário: as palavras (no caso, as usadas para fazer humor) são justamente a maneira que a discriminação encontra para se propagar. Portanto, qual a maneira de lutar contra esta discriminação se não pela crítica às palavras?
    Outro ponto a ser esclarecido é que a comédia sempre — sempre — se apresentará em forma de crítica. Não é este o problema. O problema é o que ela critica. Ela, sendo uma forma de arte, desempenha um papel fundamental na formação e divulgação de ideias. Embora sutil e muitas vezes subestimado, é bastante poderoso o potencial que os humoristas possuem. Criar um humor que não atende sua função social seria subvertê-lo, fazendo com que ele se torne, deste modo, um humor às avessas. Num cenário político no qual há tanta coisa errada para ser satirizada e depreciada, o bom senso não permite que haja espaço para piadas de mau gosto sobre o bebê de Wanessa Camargo. Pelo menos não sem as devidas represálias.
    Cabe dizer ainda que, se o humor pode disseminar paradigmas sociais, também pode quebrá-los. É claro que não é uma tarefa fácil. Se criar humor inteligente já exige criatividade, tratar questões sociais de forma leve e engraçada exige ainda mais. Não é uma questão de ser politicamente correto, nem de mero moralismo, e sim de mobilidade social, de empatia. Fazendo uma analogia ao belíssimo poema Intertexto de Bertold Brecht: importe-se com os outros antes que seja tarde.
    Para finalizar, é essencial destacar que para tudo há limites. O humor não se foge à regra. Se existe liberdade para um comediante fazer seu trabalho, também deve haver liberdade para a repreensão. As coisas não funcionam numa via de mão única. Caso um humorista se meta a falar a respeito de alguém ou de determinado grupo de pessoas, seja da maneira que for, ele está automaticamente sujeito à reação do coletivo e, sobretudo, a uma possível resposta judicial. Não aceitar isto seria colocar a profissão de humorista num pedestal e endeusá-la. Afinal, até onde eu sei, nenhum humorista está acima da lei.