Do gosto ao fanatismo musical

    Se existe uma forma de expressão mais antiga que a própria linguagem humana, é muito provável que esta seja a música. Desde os tempos mais remotos, a música fez parte da conjuntura que é a complexa cultura humana. Com o passar dos séculos, o Homem desenvolveu e aperfeiçoou técnicas visando criar e apreciar todas as formas musicais que ele achou possível.
    Com certeza poderia ser considerado cego quem é incapaz de reconhecer a importância da música ao decorrer da evolução humana em absolutamente todos os tipos de sociedade. Obviamente, a diversificação é brutal: dificilmente você encontrará, na história da humanidade, dois tipos de cultura que sejam exatamente idênticos. Mesmo porque, isso seria impossível, considerando o fato de que o desenvolvimento das sociedades segue diferentes matrizes e padrões.
    No entanto, por mais que a presença da música em nossas raízes históricas seja evidente, é bem provável que alguns não se deem conta da relevância desta arte nos dias contemporâneos. É claro que muitos têm noção do papel que ela desempenha no século XXI, principalmente quando se refere aos jovens, que costumam ouvi-la diariamente, seja no computador, no celular (com os famosos "foninhos") ou em concertos ao vivo. Entretanto, como jovem, me sinto na obrigação de sair desta "bolha" e analisar outros grupos da sociedade.
    Quando questionados, é imensa a quantidade de adultos que dizem não se importar com música. Talvez isso se dê ao fato de que a música se encontra, em sua grande parte, veiculada — e, na maioria das vezes, implícita — a outros recursos de entretenimento. Novelas, seriados, filmes e desenhos animados. Evidenciando a presença da música como complemento em tudo isso, sua importância se torna, de fato, inegável.
    Não é difícil imaginar o porquê disso. A música desperta sentimentos, trás lembranças, nos comove, nos alegra, nos deprime. Ela tem o poder de tornar momentos inesquecíveis, de ilustrar cenas históricas épicas e até mesmo de contar estórias (Tchaikovsky que o diga!). As melodias ativam determinadas áreas do cérebro responsáveis pelo raciocínio e concentração. Estimulam a criatividade e, acima de tudo, são uma grande fonte de inspiração.
    Mais do que isso, a música também nos representa. A variedade de estilos cria, direta e indiretamente, grupos de pessoas com similaridades ideológicas e/ou sociais, muitas vezes quebrando fronteiras de idade, religião e nacionalidade. Até o estilo punk, da década de 70 — cujo único objetivo inicial era ser, como o nome sugere, um mero estilo — acabou por se tornar, anos mais tarde, todo um movimento político, ético e social. Isso só comprova ainda mais o papel da música na elaboração de uma identidade coletiva, tornando cada um de nós diferente do resto da população e, ao mesmo tempo, semelhante a determinados grupos.
    Talvez este seja um dos aspectos mais notáveis da música: a capacidade de criar uma caracterização pessoal perante à sociedade, consolidando melhor a personalidade de cada indivíduo. Porém, é de extrema importância frisar que há limites para tudo. O estímulo à criação de uma identidade musical é saudável somente até certo ponto.
    Infelizmente, são bastante comuns casos nos quais as pessoas criam um vínculo tão forte com determinadas bandas ou cantores que acabam se tornando um tanto obsessivas. Não me entenda mal; não estou me referindo necessariamente aos fanboys e fangirls que existem por aí. Afinal, todos nós temos uma banda ou até mesmo um estilo musical do qual somos fãs. Contudo, a partir do momento em que isso se torna uma idolatria, a questão começa a ficar perigosa, principalmente quando se trata de uma idolatria cega.
    O fanatismo pode ser percebido por todos, exceto pela pessoa em questão. Tudo começa com um sutil presunção de superioridade em relação aos outros estilos e pessoas. Isso vai se desenvolvendo, até que, em pouco tempo, a pessoa se encontra envolvida em discussões de cunho "minha banda é melhor que a sua". Ofende-se muito facilmente, pois acredita que o ídolo é absolutamente incriticável. Aparentemente, qualquer opinião adversa é inaceitável e automaticamente desqualificada.
    Chega a ser irônico, pois nem mesmo os próprios cantores levam a música tão a sério quanto determinados fãs. De repente, a música perde sua essência como forma de expressão e divertimento para adquirir, implicitamente, a importância de irrefutável "credencial ideológico". É decerto controverso, pois nos dias de hoje reafirmar seu gosto musical de modo constante e controlador parece ter se tornado mais importante que a própria apreciação da música. Uma prova disso são as pessoas que compram camisetas e fazem a maior propaganda de determinadas bandas, mesmo não ouvindo-as. E que atire a primeira pedra quem não conhecer alguém assim.
    É plausível, de certo modo, o argumento de que alguns estilos musicais são melhores que outros, se considerados vários elementos (como a complexidade de letra e melodia, a influência de fatores históricos e principalmente a duração da popularidade), mas é necessário entender que a questão "melhor" ou "pior" é extremamente relativa, ainda mais quando a música atende a diversas finalidades. Por ela é possível transmitir ideias, expressar sentimentos, filosofar sobre as coisas da vida, mas também é possível simplesmente apenas entreter as pessoas. Não se pode limitar a música do mesmo modo que alguns parnasianistas como Olavo Bilac exaustivamente tentavam fazer com a poesia no século XX.

    Faço aqui uma comparação para ilustrar o que estou querendo dizer. A imensa maioria de músicas contemporâneas são compostas por melodias simples, repetitivas e computadorizadas, e acabam caindo no esquecimento em menos de três meses. Em contraposto, muitas músicas clássicas permanecem conhecidas e admiradas há vários séculos, produto de um grande empenho e talento por parte de compositores imponentes da época, que até hoje são consagrados. No entanto, um tipo de música não desqualifica ou invalida o outro, pois cada uma atende a um público com objetivos diferentes. Numa festa, as pessoas não estão minimamente interessadas em saber o valor histórico ou a complexidade do composição; elas querem apenas se divertir. Portanto, é preciso compreender que nenhuma música deixa de ser música por conta de suas características.
    Nem todos os estilos musicais agradam a todos, mas é justamente essa diversidade de gostos que confere a esta arte a beleza diferencial. Quem se recusa a reconhecer a importância de uma música cujo estilo não corresponde ao seu gosto pode ser equiparado à pitoresca figura de um cavalo usando um cabresto.