Humanidade de cristal

    Bem sabem os que acompanham meus devaneios noturnos pelo Twitter que sou cheio de teorias, no sentido mais banal da palavra. Não direi que tenho licença poética para isso pois reservo o direito de não ser apedrejado pelos leitores que não gostam de clichês; no entanto, é preciso dizer que, apesar das teorias em questão serem baseadas num certo empirismo, são tão mirabolantes que me sinto na obrigação de pedir que recebam-nas com bom humor e que não apliquem a elas rigor científico. Este texto é, antes de tudo, um desafogo de escrever tantos outros de compromisso com as convenções impostas estabelecidas pelo vestibular.
    Eu poderia falar aqui sobre minha teoria de que, quanto menor for um cachorro, mais demoníaco ele será, e igualmente maior será a probabilidade de meus vizinhos arrumarem um, ou sobre muitas outras maluquices cujo índice de aplicação é assustadoramente alto, mas falemos sobre algo mais construtivo. Não que o assunto realmente importe, já que cerca de oitenta por cento dos meus visitantes saem do blog sem ao menos ler uma frase. Sim, o Google Analytics está de olho em você — neste momento, inclusive! Brincadeira, brincadeira. Ou não. 

    Cortarei o papo-furado e colocarei as cartas na mesa: o ser humano é frágil. Imensa, terrível e irremediavelmente frágil. Sinta-se à vontade para espernear o quanto achar necessário, ou até esbravejar que esta é uma generalização que ofende a masculinidade alheia. O choro é livre.
    Ao nascermos, possuímos uma fragilidade tremenda. Contudo, ao contrário do que as pessoas preferem pensar, isso não muda à medida que crescemos. É que, com o tempo, acostumamo-nos com a solidão, com a decepção e aprendemos a resignarmo-nos diante do fato de que a vida deixa de corresponder nossas expectativas com uma frequência maior do que a suportada. Construímos uma carcaça que o próprio mundo nos exige, porém, dentro dela, continuamos tão vulneráveis quanto cristais.
    Eu, você, o padeiro, a executiva casca grossa, o general, os que vieram antes e os que ainda estão por vir; todos nós temos algum ponto fraco, ainda que uns demonstrem mais e outros menos. Ninguém escapa à regra. Um trauma, uma palavra específica que nos fere, o medo da rejeição social, ou mesmo alguém que, se pudéssemos, apagaríamos de nossa memória. Cada pessoa que encontramos na rua tem sua história e batalhas próprias, das quais somente ela tem consciência. As feridas estão lá, vivas, latentes, e podem ser muito dolorosas se não formos cuidadosos com onde tocamos.
    Tudo isso parece muito negativo, mas a boa notícia é que não somos robôs. You don't always have to be on top. E este é um dos motivos pelos quais deletei meu texto intitulado como "Sorria", no qual exaltei a felicidade a qualquer custo: porque percebi, depois, que sorrir nem sempre é fácil, e que nem todo palhaço é feliz. Parte da compreensão da nossa fragilidade diz respeito a, justamente, reconhecer que não somos de aço. Está tudo bem em abraçar o ursinho de pelúcia antes de dormir. Parece conversa de livro de autoajuda, mas não é. Este reconhecimento é, de fato, o primeiro passo para aceitar nossa pequenez humana e lidar com isso de modo humilde.

Publicidade infantil e o lucro ilegítimo

A minha crítica é que, apesar de haver vários temas oportunos que dizem respeito a este ano, como a Copa do Mundo, o problema da escassez de água em São Paulo, os cinquenta anos de Golpe Militar ou mesmo as questões territoriais dos curdos, palestinos, catalães e escoceses, o Enem resolveu propor uma temática completamente inesperada e descontextualizada. Isso fez com que, de certo modo, eu precisasse maquear minha falta de posição sólida em relação ao assunto utilizando um vocabulário rebuscado; talvez até demais.
Temática de redação do Enem 2014: "Publicidade infantil em questão no Brasil". Clique aqui para ler a proposta e a coletânea.
    A dinâmica social de um século atrás é, decerto, deveras distinta da atual, pois esta última engloba sistemas cuja tecnologia era impensável antes da Revolução Informacional. Parte disso está intimamente ligado com a mídia, a qual desempenha um papel decisivo na sociedade contemporânea, o que inevitavelmente implica em graves efeitos em nossa vida e na das crianças, embora alguns setores — especialmente os que lucram com isso — recusem-se a admitir.
    A relevância midiática em nosso modo de pensar e agir já foi brilhantemente notada e estudada pelos sociólogos da Escola de Frankfurt, precursora de um tipo de antropologia alemã. As consequências do consumo de informações são, conforme concluído pelos próprios estudiosos, profundas, sobretudo se este consumo for de cunho inconsequente e desenfreado. Tendo consciência disso e da perigosa influenciabilidade à qual estão suscetíveis as crianças, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) determinou a abusividade de quaisquer propagandas que visem a este público.
    Esta decisão causou uma certa revolta e, inclusive, uma tórpida desconfiança na legitimidade do Conanda para estabelecer tal medida, o que revela o quão desesperadas estão as empresas deste segmento para lucrar, ainda que a custo de tirar proveito do razo e parco senso crítico das crianças. No entanto, por maior que seja a resistência corporativista, é não somente bem-vinda como também necessária a ação que impede o bombardeio de incentivo consumista ao público infantil. A criança deve sim ser preparada para o mundo, porém, jamais exposta prematuramente a ele de forma negligente.
    Nesse sentido, é genuinamente requerida a proibição de propagandas de natureza persuasiva aos pequenos, assim como já acontece em lugares altamente desenvolvidos tais como o estado canadense do Quebec ou a Noruega. Ademais, é preciso que o sistema educacional atualize-se e adapte-se à contemporaneidade, criando e aperfeiçoando uma matéria escolar de cidadania que obrigatoriamente abarque o consumo consciente, tendo sempre a razão como sustentáculo de modo a sobrepor a danosa influência midiática.

O Ebola e a
xenofobia patológica

    O Ebola é uma epidemia que tem se alastrado na porção ocidental da costa africana e tem tido ocorrências esporádicas de providência imigracional nos Estados Unidos e na Espanha, causando sobretudo erupções subcutâneas e hemorragias sérias de efeitos mortais. No Brasil, a natureza letal do vírus acabou por criar um terror infundado na população, apesar de não haver casos confirmados da doença em território nacional.
    O fato é que, muito embora exista sim uma certa contagiosidade deste Filo virus, esta não condiz com o imaginário popular que o associa a doenças transmissíveis pelo ar, como a tuberculose. O Ebola tem como vetores, na verdade, animais silvestres, dentre os quais se destacam os morcegos frutíferos, além de ter como vetores secundários as secreções endócrinas e exócrinas de humanos contaminados. Entretanto, a desinformação toma proveito da ingenuidade e do desespero alheios para corroborar a disseminação de boatos mal-intencionados.
    A mera insinuação de que o Ebola teria chegado ao Brasil fez com que fosse despertada nas pessoas uma preocupante xenofobia, o que não deixa de ser, mesmo que no sentido conotativo, outra patologia. Existe em torno desta problemática uma noção tórpida, frequentemente alimentada por ódio, que cria uma suposta relação entre as incontáveis etnias africanas com a doença em questão.
    Esta mesma xenofobia acaba se mesclando com o racismo, pois mesmo imigrantes haitianos, cuja proveniência é a América Central, estão sofrendo discriminações impronunciáveis na cidade de Cascavel, Paraná. Isto revela a ignorância das pessoas ao fazerem uma associação entre a cor da pele com a — errônea — origem geográfica que teoricamente justificaria uma aversão desumanizante e míope a estes povos, a qual nos remete invariavelmente à triste natureza histórica escravocrata da cultura brasileira.
    Isto tudo não apenas produz graves efeitos sociais, como também impede que haja uma efetiva divulgação das informações reais acerca do Ebola, impossibilitando assim uma prevenção e tratamento maiores.
    A situação requer medidas governamentais urgentes no sentido de capacitar o aparelhamento de saúde pública com centros especializados para lidar adequadamente com problemas que exijam atitudes imediatas, tanto com os métodos convencionais homologados quanto com tratamentos experimentais, contanto que estes não sejam danosos à integridade e dignidade do paciente. E, em absolutamente todos os casos, ainda que seja necessário o isolamento provisório, o enfrentamento da epidemia deve dar-se de forma madura, solidária e, principalmente, sem a culpabilização das vítimas.

— ELEIÇÕES —

Dilma ou Aécio:
dos males, o menor

    Com 18 anos, estou longe de ter uma posição política formada; até porque, se assim o tivesse, seria uma preciosa dica do quão cego determinada ideologia me deixara. Cá entre nós, ainda que eu tivesse 81 anos, não seria sensato cessar a busca por respostas e conformar-me com as que já obtive, cristalizando-as e defendendo-as de forma dogmática.
    Sendo assim, faz-se necessário dizer que este texto definitivamente não é um guia de como governar um país (deixemos isso para Maquiavel, sim?), mas, na melhor das hipóteses, uma coletânea de conclusões às quais esteve ao meu alcance chegar e que, lembremos, estão sujeitas a mudanças.
    Quem quer que vença as eleições, seja Dilma Rousseff (PT) ou Aécio Neves (PSDB), pouco importa. As nuances entre os eventuais mandatos dos dois oponentes são sim significativas, no entanto, de qualquer modo será insatisfatório. Isso porque, quanto à maioria das posturas práticas, não muda muita coisa. Ambos são campeões em corrupção; isso não é novidade para ninguém e uma rápida pesquisa na internet é suficiente para relevar informações assustadoras sobre os partidos que vão ditar as diretrizes do nosso Executivo nos próximos quatro anos. Além disso, as empresas magnatas que financiam as campanhas dos grandes presidenciáveis são as mesmas, certificando-se que o eleito, quem quer que seja, terá com elas "dívidas informais", digamos assim. E desta forma consolida-se cada vez mais a tão chamada plutocracia. O canal de humor Porta dos Fundos, sempre muito politizado, ilustrou a situação de maneira brilhante em seu vídeo "Financiamento", o qual disponibilizo abaixo.



    Contudo, vale lembrar que não existe a opção "tanto faz" nas urnas. Até existe, mas votar em branco, nulo ou mesmo não votar é desistir do direito que lutamos quase quatrocentos anos para conquistar. É frustrante, e eu entendo perfeitamente, que as opções sejam tão limitadas, mesmo no primeiro turno; mas se existe alguma esperança, ela nascerá justamente deste calor das discussões que suscita o interesse pela política e, por extensão, afasta os krakens do Congresso que parasitam o dinheiro público sob o nariz do povo.
    A alternativa que nos resta é colocar na balança as diferenças entre os candidatos e seguir o provérbio "Dos males, o menor". Após fazê-lo, acabei por concluir que o menor dos males é, neste caso, votar 13 no segundo turno. Farei-o com um certo pesar, pois as circunstâncias não me deixaram escolha melhor. Vejamos.
    Eu, de todas as pessoas, tenho uma certa ojeriza em defender Dilma. É doloroso ver um partido que se diz "dos trabalhadores" fazer tantas alianças com setores elitistas e tomar decisões em detrimento do restante da população, além de ceder para os mandos e desmandos de bancadas evangélicas e ruralistas. Entretanto, em todos os assuntos dos quais o PT é acusado, pelo menos no que tange às acusações plausíveis, o PSDB é igualmente — se não mais — sujo. E não sou eu que estou dizendo isso; o ranking da Justiça Eleitoral está: o partido que mais teve políticos barrados pela Lei Ficha Limpa foi o PSDB, com 56, em contraponto ao PT, com 18.
    A manutenção do "poder pelo poder" com certeza é uma característica do PT, mas também do PSDB, do PMDB (principalmente), e de quase todos os outros partidos. Ideologias no Brasil são apenas fachada para angariar mais voto e, por consequência, mais poder. Exponho abaixo um trecho de um texto que escrevi em maio deste ano, O Brasil e sua putrefação política, no qual discorri sobre isso.

No Brasil, não há esquerda e nem direita. Até os partidos que já fizeram parte de fortes reivindicações sociais, hoje já perderam seu compromisso com a ideologia. Esta já não vale mais de nada; é facilmente comprada. O Ministro Joaquim Barbosa foi muito feliz em sua colocação quando disse que em nosso país há somente "partidos de mentirinha". O PT da época das greves sindicais do ABC Paulista se envergonharia caso visse a postura de alinhamento à Bancada Ruralista que o partido tomou na última década de governo. O mesmo vale para o PSDB, cujos líderes tiveram profundas raízes políticas com a UNE e com o MDB, e que hoje tem sua integridade reduzida a pó.
    Quanto ao monopólio do poder por um tempo prolongado, o mesmo se aplica. Os defensores de Aécio costumam argumentar, com uma certa razão, que, se Dilma vencer as eleições deste ano, ao final de seu mandato serão 16 anos de governo petista. Esquecem-se eles, porém, que com a recente eleição de Geraldo Alckmin para governador do estado de São Paulo, serão 24 anos de PSDB quando terminar seu mandato. Isso diz muito sobre o que o partido de Aécio realmente pensa da rotatividade do poder: "bom apenas quando nos convém". E aos que estão fora de São Paulo, digo-lhes com experiência própria que o resultado deste governo não é nada bom; quem é daqui conhece muito bem o lado deste governo que relega as escolas estaduais aos destroços, fica de braços cruzados frente à grave escassez de água, permite a falência da renomada Universidade de São Paulo (USP), dentre outras abominações administrativas.
    Aproveitando para falar sobre a experiência da população com os governantes do PSDB, é muito importante mencionar que Aécio não teve a maioria dos votos para a presidência nem mesmo no próprio estado de Minas Gerais, do qual foi governador, como você pode conferir no infográfico à direita. Chega a ser irônico, mas, antes, relevador. Se ele teve noventa e tantos porcento de aprovação após o mandato no governo estadual de Minas, como adora esbravejar nos debates, por que não venceu no próprio estado?
    Discutindo com um amigo, ele me mandou um infográfico dos votos internos de Minas Gerais, mostrando que Dilma obteve a maioria dos votos apenas nas majoritárias cidades ao norte. Para ele, isso serviria de base para o argumento de que "Dilma só venceu em Minas Gerais por conta da influência do Bolsa Família nas regiões mais pobres".
    Aqui, chegamos num ponto de crucial importância, porque boa parte da população conserva pensamentos desse tipo. É realmente muito fácil usar o pseudoargumento de que "Bolsa Família é para alimentar vagabundo" (?????) debaixo do ar condicionado, tendo as oportunidades que você teve, ao contrário de muitos. A título de conhecimento e de extirpação da ignorância, é fundamental saber que, só até 2013, o programa já retirou mais de 36 milhões de pessoas da miséria e entender a relevância disso. Não é "dar o peixe sem ensinar a pescar", é fornecer condições para que as pessoas se alimentem antes de ir pescar.
     E quanto ao argumento — baseado puramente em "achismos", vale salientar — de que programas sociais causam conformismo e fazem com que as pessoas não queiram trabalhar, é interessante evidenciar que ele acaba não se sustentando quando confrontado pelos fatos: só em 2011, cerca de 40% dos beneficiários do Bolsa Família já deixaram o programa por iniciativa própria.
    É claro que isso não torna o governo federal ou seus programas sociais isentos de críticas, mas estas últimas só serão válidas se forem no sentido de que, sozinhos, os programas são insuficientes para a promoção de uma verdadeira ascensão social e econômica, bem como para o fornecimento de uma melhor qualidade de vida. Do contrário, se você realmente acha que R$ 70 por filho é suficiente para causar conformismo e desestimular a busca por empregos com remunerações mais satisfatórias, você está profundamente iludido ou, pelo menos, deseja estar.
     Agora, voltando ao argumento de meu amigo, não sejamos levianos: é claro que o Bolsa Família teve alguma influência sobre os votos de quem optou por Dilma no primeiro turno no norte de Minas Gerais. Todavia, isso também significa que tudo o que Aécio diz ter feito pela população mineira é tão ínfimo que não compete nem mesmo com meros R$ 70 do programa social. E se apenas a região sul do estado o elegeu em maioria, isso também quer dizer que Áecio beneficiou mais esta porção de Minas do que o norte, historicamente conhecido pela carência e, naturalmente, pela necessidade de atenção governamental, a qual aparentemente foi negligenciada.
    Tratando-se de discrepâncias entre governos, tendo como grandes protagonistas FHC e Lula, não compete a mim discorrer. Primeiro porque não sou economista, historiador ou qualquer outra figura que tenha autoridade acadêmica para tal, especialmente tendo em vista a complexidade que envolve os diferentes períodos e conjunturas políticas destes, e segundo porque há quem o faça. Contudo, acrescentarei algo simples e importante à roda de discussões: as operações contra a corrupção.
    Apesar de todos os escândalos envolvendo o PT, como o famigerado "mensalão", é fato que as operações contra a corrupção só tiveram início efetivo no governo Lula. Segundo dados oficiais da Agência Senado, reunidos numa publicação de Stanley Burburinho, e do Instituto da Alvorada, houve, no governo de FHC, 48 operações e 200 prisões, contra as 1273 operações do governo Lula, acompanhadas de 15754 prisões. Os ingênuos ou os mal intencionados podem dizer que a diferença gritante entre os números se dá por conta do aumento da corrupção, mas é muito claro que o que aumentou foi, na realidade, os instrumentos contra ela. No governo Lula também foi criado o Portal da Trasparência, que rompeu com a cultura de sigilo estatal presente por séculos, e, no governo Dilma, a Lei 12529, também conhecida como Lei de Acesso à Informação.
    Ademais, a História nos ensina que as privatizações do PSDB são vetores de exorbitantes desvios de verba: entre 1996 e 2002, a Polícia Federal estima que R$ 124 bilhões foram desviados com a privataria tucana e que recuperamos somente R$ 2 milhões, o que totaliza aproximadamente 0,0016% do total. Além disso, todo o discurso liberal das privatizações vai para o ralo quando defrontado pela cristalização das oligarquias de poder aquisitivo no Brasil, os cartéis informais, suscitados pelas privatizações de FHC, o que vai violentamente contra o conceito de livre concorrência. E, se me permite o desabafo, não estou nada interessado em assistir as universidades públicas — que, em geral, são parte de um dos poucos serviços públicos de excelência — serem privatizadas.
    Reitero, novamente, que em absolutamente nenhum momento afirmo que o PT seja a solução para o Brasil. Ainda que os comerciais de campanha da eleição de Dilma retratem um país colorido onde tudo é perfeito, nossos olhos não nos deixam acreditar nessa ilusão leviana, diante de tanta ingerência por parte da União. Porém, esse ódio anti-petista é, na essência, um cabresto ideológico que ofusca as opções e, o mais importante, as consequências do voto.

A inerência dos deveres aos direitos

    Debates com temática de longa data, como a questão do anonimato, vêm sendo suscitados com o advento de novas tecnologias que desafiam os padrões éticos — e mesmo legais — vigentes. Exemplo disso é o aplicativo Secret, que possibilita a publicação de mensagens anônimas e, ignorando o princípio jurídico da identificação disposto no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, isenta o usuário de qualquer responsabilidade sob a premissa de fomentar a liberdade de expressão.
    Exceto em raros casos em que o anonimato se faz estritamente necessário para garantir a segurança da pessoa em questão, ele tende a ofuscar o campo dos deveres e passar a errônea impressão de que é permitido um tipo de liberdade de expressão indiscriminado e inconsequente.
    O que os que defendem dogmaticamente veículos como o supracitado recusam-se a entender é que, num Estado de Direito, os direitos dos quais estão dotadas as pessoas são necessariamente acompanhados de deveres. A sua liberdade de expressão é válida, porém, esta não pode ultrapassar as liberdades individuais de terceiros, tais como a dignidade e a integridade, que são absolutamente invioláveis de acordo com cláusulas pétreas — e portanto imutáveis — constitucionais. A partir do momento em que alguém se dispõe a falar sobre alguma pessoa, este alguém está automaticamente vulnerável às consequências legais.
    Contudo, estão enganados também os que, em contraponto, argumentam a favor da aniquilação de tais sistemas virtuais por uma espécie de "mão-de-ferro", adaptando para a política o termo elaborado pelo economista Adam Smith. Uma repressão estatal é inútil, pois cobre apenas superficialmente o problema e não altera a estrutura basilar deste, que é a tacanha mentalidade popular. Em lugar desta solução ineficiente, cabe uma regularização de tais tecnologias, de modo que, mesmo com o anonimato entre usuários, existam mecanismos que permitam aos órgãos jurídicos competentes identificar, apurar, julgar e, se for o caso, punir legalmente os responsáveis pelo desrespeito à Constituição, cuja validade também se aplica à esfera virtual.
    Em concomitância, são bem-vindas medidas preventivas a fim de educar e conscientizar a população, difundindo a noção de responsabilidade perante a sociedade e perante a lei, além de promover o debate para modelar aos poucos o ideário popular visando a uma efetiva mobilização.

Carpe diem
na prática

    Frases prontas de bom-dia ditas no rádio durante o horário matinal não me são suficientes. Palavras carregadas de pieguice, usadas somente para agradar os ouvidos de quem as ouve, sem no entanto passar por qualquer digestão reflexiva, não enchem barriga. São como aqueles xaropes de marca barata que adoçam nosso paladar por um instante e, ao que nos damos conta, sobra apenas um gosto amargo de algo que foi mais vão do que deveria ter sido.
    Tenho um quê com a modernidade. Não me entenda mal: como exímio membro da geração Z, seria hipocrisia e talvez até ingratidão não admitir que as novas tecnologias fizeram parte de minha formação. No entanto, amargura-me ainda mais o paladar ver como as pessoas costumam contentar-se com coisas tão vagas. Quem nos dera que metade dos selfies contendo como legendas frases aleatórias de biscoito da sorte fosse posta em prática.
    O que faz com que as palavras sejam algo maior que meras letras enfileiradas? A absorção real de seu sentido. A banalização desta faz com que mensagens realmente importantes se percam, juntando-se ao conjunto de máximas populares preconcebidas tão vazias quanto o niilismo de Nietzsche.
     Perceba que não estou instaurando aqui uma vigilância virtual. Não é necessário que sejamos a Rainha de Copas e demandemos que "cortem a cabeça" dos que eventualmente compartilharem músicas apenas porque estas são agradáveis — e não necessariamente por possuir um sentido profundo. Cada um é livre para manifestar-se como melhor achar. Proponho apenas que coloquemos a mão na consciência antes de fazer uso de frases tão fortes em situações de dimensão leviana, de modo a darmos um basta nestes espetáculos chafurdados em superficialidades e dramas desnecessários.
    Em vez de pregar frases cujos verbos sequer conseguimos conjugar adequadamente, dizendo vagamente o quão lindo está o dia (apesar de mal ter olhado para o céu), que tal distribuirmos sorrisos no parar do semáforo? Um genuíno "muito obrigado" a quem prepara sua comida? Ou, ainda mais raro, um "como você está?" realmente interessado na resposta?
    De nada adianta fazermos politicagem nas redes sociais e desejar que o dia de todos seja ótimo, se, minutos depois, passamos pelo porteiro de nosso prédio como se sua existência fosse insignificante. Lero-lero não faz o mundo girar. Atitudes positivas o fazem.

Ponto

     O ser humano possui um certo problema com a abstração de grandezas.
    A barata que entra pela janela decerto deve ter escolhido a casa errada, especialmente quando não estamos em nossos melhores dias. Apenas uma chinelada é suficiente para fazermo-nos sentir grandiosos diante da tal e mostrar quem manda. A menos, é claro, que ela voe; aí complica um pouco. O mesmo vale para o mosquito que, sabe-se lá como, encontra a única parte de nosso corpo descoberta antes de dormir — a cabeça — e insiste em zumbir em nossos ouvidos. Apesar do inevitável tapa que damos em nossas próprias orelhas, mostramos que estamos no controle.
    No entanto, não é difícil perdermo-nos em pensamentos ao olhar para cima num dia aberto e deparar com o gigante céu anil, cujas nuvens macias estão mais longe do que nossa mente pode sequer imaginar. Ou, ainda, surpreendermo-nos com as pessoas que viram pequenos pontinhos aos nossos olhares quando decolamos pela primeira vez.
    Somos apenas alguns dos tantos outros pontinhos que já pisaram e que ainda pisarão na Terra. Ela própria, inclusive, é outro pontinho azul, no meio do nada e rodeada por uma infinitude de outros pontos.
    Não importa o quão grandiosos nos sintamos ao realizar uma proeza, o número de diplomas acadêmicos acumulados ou mesmo a quantidade de zeros no saldo da conta bancária. O fato é que, se um minuto de reflexão for-nos permitido, sentiremos nos ossos e na carne o quão pequenos somos.
    Perceba, entretanto, que não há nada de errado com isso. O que nos distingue dos pontos de tinta — ou de pixels, se preferir — é que nós, ao contrário destes últimos, possuímos a capacidade de falar, comer, chorar, tolerar, sentir. Temos, sobretudo, sonhos, amores e outros pontinhos pelos quais viver. E se nos é dada a oportunidade de fazê-lo, é preciso que façamo-lo, seja como for. Contanto, claro, que nos sintamos bem e nos asseguremos de que ninguém é prejudicado.
     Tudo que fuja disso — arrogância, complexo de superioridade, autoritarismo, malevolência alheia — não tem fundamento, justamente por basear-se na premissa de que alguns pontinhos são maiores que outros. Não. Pontos são pontos. A paz reside em aceitar nossa pequenez humana com humildade.

— CONTO —

Charutos


    13 de julho de 1884. A escuridão e a névoa fria ofuscavam os largos troncos das árvores próximas, como de costume. Faziam-se audíveis somente minha respiração gelada e meu tique vicioso de bater as unhas no suporte de minha maleta de couro, o qual eu segurava. À distância, o ruído das engrenagens começou a preencher o ambiente, ao que os trilhos à minha frente tremiam em compasso. Uma luz ao longe ficava cada vez maior.
    — Boa noite, senhor — disse o comissário quando a porta do trem abriu para me receber. — Permita-me, sim?
    Subi a bordo e o rapaz prontamente recolheu meu casaco. O interior da maquinaria se encontrava quente e aconchegante. Encaminhei-me até a cabine indicada pelo bilhete e cumprimentei Rita, minha elegante colega de trabalho, e Edmundo, um comerciante de objetos pouco convencionais com o qual fiz amizade ao longo daqueles últimos meses.
    Rita passava batom frente a um espelho de mão quando dei a ela um sinal com os olhos, indagando quem seria aquele senhor ao seu lado. Ele usava uma bengala, mesmo estando sentado, bem como um chapéu bastante antigo e um álbum de fotos no qual parecia estar absorto. No entanto, Rita parecia conhecer o misterioso senhor tanto quanto eu: respondeu meu olhar com outro de semelhante incógnita. O mesmo valeu para Edmundo, que deu de ombros em resposta a meu gesto.
    — Com licença — disse o velhinho, após alguns minutos. Seu tom de voz era cordial e simpático. — Algum de vocês poderia fazer a gentileza de emprestar-me um charuto?
     Abri minha maleta e fiquei satisfeito encontrar a seção de charutos cheia. Eu havia parado de fumar, então tinha charuto de sobra. Retirei um e o ofereci ao nobre senhor, com um sorriso.
    A partir daí, tornamo-nos amigos de cabine. Os dias se passaram e, noite após noite pegando o trem a fins de trabalho, nós quatro conversávamos sobre as coisas da vida e tudo mais. Aquele humilde senhor de bengala demonstrava, em suas palavras, ser deveras sábio e ficava feliz em contar-nos algumas de suas histórias.
     Em uma destas noites, após eu oferecer-lhe o charuto como era habitual, o senhorzinho apontou para uma das casas no meio da floresta pela qual passávamos todas as noites e contou que chegou a morar ali por muitos anos. Explicou que, apesar do sorriso que levava no rosto todos os dias, seu passado era carregado de uma tristeza maior do que muitas pessoas poderiam aguentar.
     — Já tive muitos inimigos, fosse no trabalho, fosse em outros lugares — contava ele, ao som dos ruídos abafados do trem andando sobre os trilhos. — Mas nunca cheguei a levar as inimizades tão a sério. Um dia, ao chegar em casa, encontrei minha mulher e meus dois filhos, um de sete e um de dez, ensanguentados no chão.
     Tanto eu quanto Rita e Edmundo estávamos horrorizados. Ele continuou, olhando para o chão e recordando o passado doloroso:
     — Desde então, decidi sair de lá. Esquecer tudo o que aconteceu. Recomeçar algo novo, talvez. — Fez uma pausa. — Mas por mais que eu tente fugir, acabo sempre passando aqui perto, percebe? É como se eu estivesse preso ao passado, de alguma maneira.
     Aquilo entrou na minha cabeça de um modo impressionante. A empatia falou mais alto e não pude deixar de imaginar-me no lugar deste senhor, chegando em casa e encontrando minha esposa e minha filha assassinadas.
    Na noite seguinte, dividi a cabine somente com Rita e Edmundo. O senhor de bengala não apareceu mais. O mesmo se repetiu nos dez dias seguintes, até que Rita, preocupada com o que poderia ter acontecido com o senhorzinho, decidiu que deveríamos visitar sua antiga casa. Deste modo, talvez poderíamos contatar algum dos vizinhos e descobrir seu novo endereço.
    Assim fizemos. Num sábado, antes do pôr do sol, descemos do trem num ponto próximo e caminhamos até a casa para a qual ele havia apontado. Era grande, até maior que as outras ao redor, mas suas janelas estavam todas fechadas e a poeira acumulava sob a porta.
    De porta em porta, batemos nas casas vizinhas e, de todas, fomos atendidos somente em uma.
    — O que vocês querem? — sibilou a mulher idosa que abrira somente uma fresta da porta para falar conosco. Suas rugas denunciavam sua idade extremamente avançada.
    — Senhora, procuramos um senhorzinho que se mudou daqui há alguns anos — explicou Rita, com o tom mais amigável possível para lidar com a rispidez do olhar de sua interlocutora.
    — Como é o nome dele? — questionou a senhora.
    Olhamos uns para os outros e então tentamos buscar na memória. "Ele não disse o nome", percebi após refletir sobre o assunto.
    — Não sabemos, mas ele costumava morar ali naquele sobrado — respondeu Edmundo, apontando para a casa em questão.
     A mulher fez uma expressão de quem é intolerante a tolices e disse:
    — Não diga asneiras, rapaz. A família que morava naquela casa morreu há cinquenta anos.
     — Sim, sabemos. Mas estamos falando do pai da família. Procuramos ele.
     O rosto da mulher parecia expressar a dúvida de estarmos loucos ou, na pior das hipóteses, estarmos fazendo-lhe uma brincadeira de mal gosto. Em tom soturno, disse, muito brevemente:
     — Ele se matou logo após descobrir que a família estava morta.
     — Mas...
    Olhei minha maleta. Absolutamente todos os charutos estavam lá.

— NOTA —
Aos que leram até o final, recomendo que releiam a última fala do senhor de bengala a fim de entender o que ele realmente quis dizer.

O problema da direita/esquerda no Brasil

    Seja nos fóruns de discussão, nos comentários das redes sociais ou nas opiniões dos assíduos leitores dos sites de notícias, dez minutos de leitura são suficientes para que qualquer um com um mínimo de clareza política se estresse.
    Ainda que a situação do Brasil se deva a um contínuo processo histórico de alienação da população — no sentido etimológico da palavra, de "tornar alguém alheio a algo" — e de uma desesperança política crônica causada pela falta de integridade e de transparência dos que elegemos, a maioria das pessoas continua insistindo em discutir com todo ímpeto questões puramente ideológicas. E pior: isso está quase sempre ligado a um maniqueísmo extremista e, por mais redundante que possa soar, burro. Ou é direita, ou é esquerda. Se é assim que os brasileiros enxergam, discutamos então sobre esses dois lados.
    A direita é conhecida de longa data por argumentar com teorias conspiratórias ("Golpe comunista de João Goulart!"), por radicalizar o discurso do adversário político para deslegitimá-lo e por ignorar as mazelas sociais atribuindo a elas um caráter imaginário, como se fossem "espantalhos da esquerda". Isso quando não fazem uso das falácias ad hominem, o que, convenhamos, requer menos esforço cognitivo do que elaborar argumentos válidos.
    Já a esquerda costuma enfiar os pés pelas mãos ao tampar os olhos para a precariedade política e isolar-se num mundo fantasia onde algumas medidas assistencialistas são suficientes para compensar toda a falta de estrutura e oportunidades que a população carente continua enfrentando. É importante lembrar, queira a esquerda ou não, que só porque um governo é supostamente "o mais popular da história nacional", isso não significa que este governo esteja automaticamente isento de críticas. Alianças com a bancada ruralista e a obediência às chantagens da bancada evangélica continuam existindo, e ressaltar estes fatos não faz ninguém "coxinha".
    Claro, falta ponderação. É em tempos como este que a ausência de difusão de informação grita: o brasileiro tem o péssimo hábito de jogar todo o encargo para a principal figura de seu Executivo, o presidente. No entanto, é importante lembrar que a administração dos recursos referentes à educação — com exceção das universidades — e à saúde pública, bem como de muitos outros setores fundamentais ao desenvolvimento da sociedade, compete à esfera Estadual ou à Municipal. É por esta razão, dentre muitas outras, que o dedo deve pesar com consciência em absolutamente todas as vezes que este tocar a urna, não somente para eleger os presidenciáveis.
     Parcialidade sempre irá existir, seja por simpatia a determinada ideologia ou algo do gênero. No entanto, não devemos cair no erro de usar verdadeiros cabrestos ideológicos. Além disso, uma discussão só pode ser promissora a partir do momento em que os participantes lembram que não são crianças e que deselegâncias gratuitas não ajudam em nada.
     A fórmula para a construção ideal de um modelo democrático reside no constante questionamento do status quo, na humildade em aceitar ou rejeitar ideias diferentes das suas — sob a luz do senso crítico e da ponderação — e na maturidade em levar uma discussão sem picuinhas desnecessárias.

Franqueza

    Sempre tive um compromisso com a verdade. Não só de papel passado, mas também de coração. E não é nem questão de moralismo, como algumas pessoas podem pensar.
    A vida se constrói de pequenas conclusões às quais chegamos ao longo dos anos. Dezoito primaveras foram-me suficientes para perceber que tinha razão minha avó quando dizia que mentira tem perna curta.
    Que me perdoem os céticos, mas é fato. Faço aqui uma constatação empírica, seja ela garantida pela Lei de Murphy, pelo Logos, pelos princípios herméticos ou pelo que preferir. Quanto mais mentiras você traça para contornar as situações — ou as pessoas —, mais evidente é o risco de enrolar-se na própria teia.
    Claro, não sejamos presunçosos: o tempo varia. Não é do dia para noite. Pode levar um mês, um ano ou dois milênios. No entanto, o organismo vivo que é a verdade trabalha para vir à luz. Nesse meio-tempo, o que pode ter começado com uma palavra se torna uma bola de neve. Você pode até pará-la em um determinado ponto e achar que se safou, porém, apesar de não ter percebido, ela sujou todo o caminho por onde percorreu.
    Não venho por meio deste propor a discussão de debates abertamente filosóficos, religiosos ou políticos, até porque as linhas seriam incontáveis se as verdades relativas fossem o assunto. Antes, refiro-me à falta de comprometimento com as verdades cotidianas; à mentira contada aos pais para ir à tal festa; à justificativa inverídica dada à namorada quando é questionado se está tudo bem.
    A solução obviamente não é fazer voto permanente de sinceridade e viver como um monge tibetano. Não é preciso extremismo: é mais simples que isso. A paz reside em evitar mentiras desnecessárias. Caso contrário, você falta com a verdade com tamanha naturalidade que passa a perder a sinceridade até consigo mesmo; por consequência, perde a confiança em toda a raça humana, pelo simples motivo de não tê-la nem em si próprio.
     Adianto desde já, porém, que cometem um grotesco equívoco os que hasteiam a bandeira do "sou sincero a qualquer custo". Sinceridade não significa dizer o que quiser a quem quiser. É preciso tomar cuidado para não tornar tênue a linha entre franqueza e crueldade. Os que não conseguem guardar comentários desnecessários para si próprios deixam transparecer a infantilidade ao lidar com o mundo que os cerca. Isso não é ser autêntico; é ser mal educado. É perfeitamente possível ser franco sem cair na deselegância; com empatia e gentileza, tudo se resolve. É só questão de saber como fazê-lo.
    Mas voltando aos que abraçam a mentira como se esta fosse um remédio rápido para as mais simples situações, é importante ressaltar que a natureza tem seus meios para fazer a verdade vir à tona. Trata-se de praticidade: se é somente uma questão de tempo para surtir as consequências, por que mentir? No final, a mentira acaba invariavelmente custando mais caro que a verdade. A verdade é filha do tempo.

Quem vai pagar a Copa

    Hoje inicia-se a Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. Sim, Brasil, país no qual crianças e idosos morrem na fila do pronto-socorro; onde uma educação pública de qualidade chega a ser risível, de tão surreal; cuja população, especialmente a marginalizada, é deixada às mínguas e do qual a desesperança política já se apoderou há tempos. Entretanto, não gastemos mais tempo em discorrer sobre o panis et circenses ou sobre outros temas já percebidos por qualquer um que tenha uma dose mínima de lucidez. Falemos do que foge ao óbvio; no caso, por um viés mais econômico.

    Compete ao Governo fornecer todo o tipo de preparação para a Copa, seja ela direta ou indireta. Sendo assim, é evidente que a construção e a manutenção dos estádios, bem como de uma infraestrutura urbana que dê suporte à demanda turística, seja bancada com dinheiro proveniente dos cofres públicos.
    Aos que se permitirem a reflexão, causa grande estranheza a incoerência em financiar um evento privado com verba pública e, de modo contraditório, cobrar pelo acesso a ele um valor absurdo dos brasileiros, que já sustentam o evento pagando um dos maiores encargos tributários do mundo. É como se a natureza do evento fosse de uma duplicidade que depende da conveniência: público no que diz respeito a parasitar a máquina estatal, privado quando se trata de arrecadar lucros exorbitantes.
    Os simpáticos à Copa decerto cometem a ilusão de argumentar que o turismo decorrente dela compensa o prejuízo, pois traz benefícios. A pergunta é: benefícios a quem, exatamente? Além das aberrações jurídicas como os tão chamados tribunais de exceção que serão instalados nas proximidades dos estádios, com penas mais severas e julgamento sem ampla defesa[1], é garantido aos estádios e a outros eventos menores atrelados à FIFA o monopólio comercial num raio de 2km, o que não deixa de implicar em duas violações à Constituição Federal: primeiro em razão da privatização de uma área pública — tanto da rua quanto do estádio, que, lembremos, foi financiado com o dinheiro do povo — e, por extensão, o desrespeito ao artigo 5º, que assegura o direito de ir e vir; e em segundo lugar pela oligopolização, que não passa de uma espécie de cartel legitimado pelo próprio Estado.
     Portanto, os únicos verdadeiramente beneficiados são as grandes empresas parceiras da FIFA, com permissão comercial exclusiva nos arredores do evento. Quanto à suposta movimentação da economia gerada no restante das áreas, os comerciantes podem até faturar muito mais do que o convencional, mas estes preços recaem também sobre a gigante parcela da população que não tira o sustento do comércio, como funcionários públicos. No fim, o que sobra é uma concentração de renda ainda maior.
    Algumas vantagens estruturais podem até vir em decorrência da Copa, como o funcionamento do metrô de Salvador após 14 anos de atraso de obras ou melhoras quantitativas no meio rodoviário. No entanto, cabe ponderar que estas medidas só se deram devido à urgência de comportar a leva turística no país. A longo prazo, dificilmente será mantida a manutenção ou mesmo o uso de tais melhorias. O mesmo se aplica aos estádios que, embora fiquem "para a posterioridade", certamente não terão tanta utilidade como teriam, por exemplo, hospitais em zonas periféricas.
    Não se trata de ser contra o espírito futebolístico. Pelo contrário! É ser contra a comercialização do mesmo; é perceber o quão incabível é a restrição do acesso ao esporte, limitando-o às pessoas que podem pagar três salários mínimos para ter acesso a um ingresso.
    O problema não reside na Copa em si, mas em sua gestão. Seria interessante — e sobretudo coerente — se ela fosse sustentada pela iniciativa privada, sem o envolvimento direto de dinheiro público. Além de ser mais democrático por ter como financiadores apenas os que de alguma forma se interessam pelo evento, também evitaria os enormes desvios de verba, pois como diz a máxima popular, doeria no bolso dos grandes empresários.
    Em tempos de crise conjuntural, não podemos nos dar o luxo de aceitar o que nos impõem. É preciso questionar quanto e a quem custará um "olê, olê olê olá".

— CONTO —

Viver para trabalhar

     Sueli odiava acordar às seis em ponto. Correção: Sueli odiava acordar. Fazia-o primeiro por necessidade, pois os relatórios do escritório não iriam fazer-se sozinhos, e segundo porque quanto mais rápido saísse de perto de seu marido, melhor. Jorge e ela eram casados havia vinte e nove anos; detestavam-se havia dezesseis.
     Quando se dirigiu ao banheiro para realizar as necessidades matinais, encontrou a tampa do vaso sanitário levantada. Embora assim estivesse todas as manhãs, aquilo não deixava de irritá-la nem mesmo por um dia. Aliás, várias eram as coisas que incomodavam-na. Suas rugas no espelho que teimavam em dedurar sua idade; o porteiro do prédio que fazia questão de dar bom-dia, como se sua existência fosse minimamente significante para Sueli; o malabarista de semáforo que, mesmo não sendo requisitado, insistia em realizar seu show e tinha a petulância de cobrar por ele; pessoas que demoravam na fila da cafeteria por estarem indecisas sobre qual tipo de cappuccino pedir; o atendente que sorria de orelha a orelha dizendo: "Volte sempre!".
    Este último item era especialmente desagradável para Sueli pois, pelo princípio social de reciprocidade (ainda que falsa), ela era obrigada a sorrir de volta. Seria muito mais aprazível se o atendente em questão simplesmente cumprisse o trabalho ao qual foi designado, em vez de abrir um sorriso cínico a cada cliente.
     Café tomado. Lá ia ela para mais um dia de trabalho. O único lado bom de fazer parte de um grande escritório era ter um bom lugar para estacionar o carro; de resto, não se aproveitava nada: ter que conviver com colegas de trabalho detestáveis que só sabiam falar de si próprias e de suas ambições medíocres; agradar e obedecer seu superior, cujo único mérito necessário para ter chegado àquele cargo fora ter um parentesco com o diretor da empresa; preparar documentos carregados de linguagem técnica para resolver problemas inúteis de pessoas com as quais sequer se importava.
    Trabalho. Enxaqueca. Mais trabalho.
    O relógio parecia estar de mal com Sueli, pois andava a passos de tartaruga. Quando finalmente deu o horário, aproveitou que havia uma farmácia ali perto e comprou o primeiro tarja preta que encontrou.
    Chegou em casa e foi recebida por Jorge não com um "Como foi seu dia?", mas com um "Cadê a janta?". Sua resposta, pouparemos o leitor de saber, por razões éticas. Deu as costas e foi até o quarto observar sua coleção de sapatos, sua única fonte de tranquilidade.
    Sueli nunca parou para pensar o que estava fazendo com sua vida. Trabalhava, trabalhava e trabalhava, afinal, era preciso pagar as contas. Ademais, assistia Zorra Total aos sábados, lia e concordava com colunistas da Veja, visitava os parentes dos quais não gostava nos finais de ano e viajava para algum lugar costumeiro quando sobrava algum dinheiro.
     Ainda que de forma intuitiva, Sueli mantinha uma opinião de cunho estoico no sentido de justificar o conformismo como sendo tão natural quanto a inércia. Conduzia seus dias de forma mecânica, sem ter consciência disso. Mas tudo bem, porque, para ela, felicidade só existia em conto de fadas. Quem tentasse fugir da "vida real" não passava de um tolo.
    Ao fim, Sueli nunca conheceu a vida real, tampouco vida alguma. Ao seu enterro, só uma pessoa compareceu: o porteiro de seu prédio.

— CRÔNICA —

Vestibulando

    O despertador toca. Só mais cinco minutinhos. Dez. Vinte. Acordo meia-hora depois. Quer dizer, meu corpo acorda, pois minha mente permanece num curioso estado de semi-consciência por vários minutos. E ainda há quem não acredite em zumbi. Pfff!
     Antes de sair, bate aquela sensação de que você está esquecendo alguma coisa, embora não saiba exatamente o quê. Lá vamos nós checar a bolsa. Material com o peso equivalente ao de um saco de cimento, confere; estojo com miniatura do Darth Vader e uma mini-picareta de Minecraft, confere (se você matou sua criança interior, não espere que todos o façam); cadernos, confere; Nesfit, confere. A propósito, sou a favor de que todo estudante receba Bolsa Nesfit ou algo do tipo, porque olha... não é fácil. Enfim, tudo em ordem.
    Ao chegar na sala de aula dou bom-dia à meia dúzia de gato pingado que fica ali em clima de velório antes de começar a aula. Às vezes me incluo nesse grupo, diga-se de passagem. Na cantina do cursinho algumas pessoas falam alto, tomam café, riem; isso geralmente ajuda a despertar. O sinal toca, aquela música irlandesa de novo, pra variar. Se eu ouvir mais uma vez, juro que mato um.
    Abro o caderno e pauso a caneta sobre o espaço de colocar a data. Que dia é hoje? "Você não lembra nem o que comeu ontem e quer lembrar a data?", caçoa meu id. O superego ainda não havia acordado, provavelmente.
    Mesmo quando o dia não é dos melhores, faço aquele esforço para me manter acordado nas primeiras aulas. Primeiro por necessidade e segundo por uma pontinha de culpa que bate quando os estudos são negligenciados. Meu olho fecha e a imagem do concorrente asiático estudando vem à mente. Cafeína em forma de pressão psicológica. Estou certo que os estudantes que partilham dessa neurose me compreenderão.
    "Segue o jogo!", diz um certo professor. Intervalo, aula, intervalo, aula. Os ponteiros alinham-se ao um e ao doze. Perdoem-me pela gordice, mas é a hora mais esperada do dia. No trajeto para o restaurante, tudo pode acontecer. Meus amigos são testemunhas do dia em que um mendigo me parou dizendo: "Excuse me" e balbuciando mais alguns grunhidos indistinguíveis; ou quando um senhor não muito sóbrio me perguntou onde ficava a Rodovia Anhanguera, pois precisava pegar um táxi para ir de caminhão até Brasília (?) e, percebendo que eu não poderia ajudá-lo, despediu-se e me aconselhou a não falar com estranhos, sendo ele próprio um estranho. Isso sem mencionar a interrupção brusca por uma velhinha que requisitava ao balconista uma pamonha de queijo. Não a culpo; talvez pamonhas de queijos sejam como as coxinhas, remédios para crises existenciais.
    O almoço também é um tanto quanto insano; reflexões com dois amigos (ambos prestando cursos de exatas) sobre quanto seria zero elevado a menos um, ou quanto seria infinito menos um. Dizem que levar a vida menos a sério, mais na esportiva, ajuda na digestão. Não na digestão dos alimentos, e sim na da própria vida.
    Mais algumas aulas e então rumo à sala de estudos. Todos estudando exatas ou biológicas. Por que as matérias de Humanas são sempre excluídas no cronograma de estudos? É mais fácil ver um político cumprindo suas promessas do que ver alguém além de mim estudando Filosofia.
    Fones no ouvido, Spiegel Im Spiegel no máximo, marca-texto em mãos. Uma caixa de marca-textos como presente de aniversário não cairia nada mal, vale pontuar. Apostila aberta. Como resolve esse exercício? Será que se eu fizer a semelhança do BCA com o DEF... Não. E por lei do ângulo externo? Aí eu isolo o alfa e... Consegui! Uma amiga vem me perguntar meia hora depois como faz e eu não lembro. A memória de um peixe dourado novamente manifestando-se com vigor.
    Um pouco de conversa nos pufes. Um dos poucos momentos de socialização do dia. De resto, dispenso comentários. Tinha razão um outro professor quando disse que, se sua vida social vai bem, algo vai muito errado com seus estudos.
    Paralelamente às matérias, ler as páginas diárias dos dois livros conforme o programado. Acredite se quiser: é possível aprender sobre latossolo e Durkheim num mesmo dia. Se tudo correr bem, antes de novembro os termino. E lá vão mais três litros de marca-texto. Uma consulta básica no Wikipédia, um breve e consequente devaneio nas imagens dos castelos de Luxemburgo. Preciso conhecer esse lugar.
    Consulto o relógio. Quase sete horas. Já? Consulto o celular, só para confirmar. Trinta e oito chamadas perdidas. "Mãe." Ok, foram apenas seis chamadas perdidas, mas o exagero aqui é justamente para mostrar como me senti na hora. Arrumo o material correndo e entro no carro, para não me atrasar ainda mais.
    As poucas horas restantes da noite não são muito produtivas. São bem insuficientes, eu diria. Minha irmã foi feliz em sua colocação ao dizer que o dia seria melhor com mais horas. O banho, a consulta ao Porta dos Fundos e aquela revisada rápida em alguma matéria que não absorvi bem. Acho que vou d...
    Só mais cinco minutinhos.

O Brasil e sua putrefação política

    Chutemos a etiqueta e a polidez para escanteio: brasileiro tem nojo de política. Sua animação em ano de eleição é a mesma de alguém que se casa pela vigésima vez após ter sido traído em seus dezenove matrimônios anteriores. As mesmas promessas vagas, o mesmo cinismo, o mesmo comprometimento que não tarda a cair por terra com impressionante efemeridade.
    Não se trata nem de uma questão partidária. No Brasil, não há esquerda e nem direita. Até os partidos que já fizeram parte de fortes reivindicações sociais, hoje já perderam seu compromisso com a ideologia. Esta já não vale mais de nada; é facilmente comprada. O Ministro Joaquim Barbosa foi muito feliz em sua colocação quando disse que em nosso país há somente "partidos de mentirinha". O PT da época das greves sindicais do ABC Paulista se envergonharia caso visse a postura de alinhamento à Bancada Ruralista que o partido tomou na última década de governo. O mesmo vale para o PSDB, cujos líderes tiveram profundas raízes políticas com a UNE e com o MDB, e que hoje tem sua integridade reduzida a pó. Essas duas menções são apenas a título de exemplo, mas a situação não é muito diferente para o restante dos partidos. Cabe aqui, portanto, o que Aristóteles cunhou como fronesis: saber distinguir com prudência o que diz respeito à ideologia, portanto à teoria, do que está relacionado à prática. É preciso que guiemos a discussão sob a luz desta última.

    Comecemos então pelo mais óbvio: a corrupção. Todas as esferas, desde a municipal até a federal, passando inclusive pelos três poderes, estão entupidas de parasitas do dinheiro público. Isto pode ser inferido não somente pela unanimidade popular como também por cinco segundos de reflexão. Como pode um país arrecadar aproximadamente R$ 55.000 por segundo[1] em impostos e ainda prover serviços públicos de tamanha precariedade? O retorno que a população recebe é ridículo. Para onde vai todo esse dinheiro? Evapora?
    Está presente nas entranhas da máquina estatal de nosso país uma versão monstruosamente ampliada do "jeitinho brasileiro de ser". Embora a essência seja justamente esta, a desonestidade aqui não reside em cortar filas; quando nos referimos ao cenário político, ela é estrutural. É tudo de uma torpeza crônica nauseante: lavagem de dinheiro, manobras eleitorais que não passam de uma nova espécie de coronelismo, nepotismo, concessões irregulares e imparciais, e assim por diante. Chega a ser difícil acreditar que os responsáveis pela conjuntura política consigam ser tão ignóbeis a ponto de, mesmo diante da podridão do sistema, deitar a cabeça no travesseiro e dormir de consciência limpa.
    Sem mencionar a descarada ironia presente em nosso Legislativo. Partidos têm a pachorra de se intitularem como Democratas (DEM) ou Partido Progressista (PP), estando estes ligados à ARENA do Regime Militar de 64. A pateticidade não para por aí: colocar um pastor abertamente homofóbico na Comissão dos Direitos Humanos equivale, em níveis de coerência, a permitir que Adolf Hitler presidisse uma Comissão de Defesa aos Judeus.
    Os grandes veículos midiáticos — denominados por muitos o Quarto Poder, tamanha a sua influência na sociedade — são, no melhor dos casos, cúmplices. A população não tem voz; quando tem, como foi o caso nas manifestações de junho de 2013, é completamente desarticulada. Não mantém objetivos claros e concretos; em vez de reunir-se em torno de uma proposição legal específica, como o PL 480/2007, foca-se em reivindicações tão genéricas quanto as promessas eleitorais. Cartazes com dizeres como "QUEREMOS EDUCAÇÃO" só hão de ser levados a sério pelos governantes se soubermos como e sobretudo de quem exigir.
    Ademais, a única coisa capaz de alimentar as esperanças de um povo deixado às minguas seria uma drástica reforma política. O voto compulsório, o mecanismo de aliança de candidatos (chapas eleitorais), os sistemas de representatividade verticais e indiretos, o financiamento empresarial a candidaturas, e muitos outros pontos precisariam ser revistos. Pautas como essas dão margem para muita discussão, e seria crucial para a consolidação de uma verdadeira democracia se os brasileiros pudessem tomar parte no assunto e sentir-se engajados com a política.
    Não é um presidente, um governador ou um deputado que vai diminuir o abismo que existe entre a população brasileira e a política, sobretudo da noite para o dia. Ainda há esperança, porém não num cenário carregado de estagnação e conformismo. Resultados frutíferos só ocorrerão se houver conscientização do cidadão brasileiro, no sentido de ser menos complacente com o status quo e exigir mudanças sérias.

Um sistema educacional em ruínas

    Que a educação brasileira não é grande coisa, todos já sabem. No entanto, o maior erro que devemos ter o cuidado de não cometer é tratar a questão de modo genérico, como se não houvesse mais esperanças e por isso fosse justificável uma análise superficial e conformada.
    É fato que o problema possui um enraizamento muito profundo, mas desvendá-lo e estudá-lo fica razoavelmente fácil quando são pontuados cada um os fatores que o desencadeiam.
    Ainda que eu esteja apto a discorrer apenas sobre o ensino público do Estado de São Paulo, em razão da meia década de experiência própria, não é completamente errôneo dizer que as considerações aqui feitas podem ser aplicadas ao restante do Brasil, uma vez que todos os sistemas escolares se integram, se não por um determinado padrão cultural, ao menos pelo fato de responderem ao mesmo órgão governamental, que é o Ministério da Educação.
    Comecemos pelo mais evidente. Existem dois problemas centrais quanto ao ensino público e, infelizmente, eles envolvem justamente os elementos mais cruciais de qualquer sistema educacional: o professor e o aluno. Está presente em ambos, pelo menos por linhas gerais, um desinteresse mórbido, tanto em aprender quanto em ensinar. E apesar da facilidade que isso implicaria, não faremos aqui como fazem os que se contentam apenas apontando o que está errado. Iremos mais adiante, de forma a entender a fundo por que está errado.
    Salvo significativas exceções, a maior parte dos professores da rede pública revela uma enorme falta de disposição em ensinar. Em primeiro lugar, porque seu conceito de "ensinar" não tem absolutamente nada a ver com real aprendizado. Cresci aprendendo que, mais importante que prestar atenção na aula, é copiar o conteúdo do quadro negro. Não foram raras as ocasiões em que o professor gastava todo o tempo da aula escrevendo na lousa e saía da sala sem ter dito uma sequer palavra sobre a matéria. "É preciso deixar registrado o conteúdo", diziam eles. Pois bem: hoje não tenho nem os cadernos (devem estar perdidos por algum canto empoeirado da casa) e nem o conhecimento que devia ter sido passado a mim. De que adiantou?
    E o segundo fator que de certo modo explica a má vontade do professor é a questão salarial. Não é novidade para ninguém, mas os professores brasileiros estão entre os mais mal pagos do mundo. Além da desmotivação natural presente em qualquer profissional mal pago, há de ser considerado que um mercado que não é valorizado também não estimula uma legítima seleção de profissionais capacitados, pois estes não se sentem atraídos pelo ingresso na carreira.
    Porém, é importante perceber que postular os problemas em relação aos professores não isenta o aluno de qualquer responsabilidade. Este participa do processo escolar em absolutamente quaisquer critérios de análise e, sendo assim, a incumbência de um sistema disfuncional é em grande parte sua. No entanto, é muito precioso ressaltar que seria de uma tremenda falta de ética textual analisar isto de forma simplista, afirmando que a antipatia dos estudantes pela escola tenha surgido do nada e sem qualquer razão aparente. Não. Com certeza existe algo por trás desta postura, e é justamente sobre isto que precisamos refletir.
    As escolas tradicionais, do modelo que conhecemos hoje, foram criadas por volta do século XIX, sob inspiração da já ascendente industrialização. Não por coincidência, o sistema educacional teve sempre como base a teoria de psicologia comportamental — de grande aplicação à lógica industrial — denominada Behaviorismo Clássico, segundo a qual os seres humanos seriam como "massinhas de modelar", sendo os trabalhadores portanto suscetíveis a uma padronização conveniente aos dominantes.

O cerne da educação brasileira (...) é fruto de uma imaturidade pedagógica sem tamanho. Tratam o aluno como criança e esperam que ele aja como adulto.
    Mesmo centenas de anos depois, ainda jazem inúmeros resquícios desta mentalidade na escola contemporânea, mesmo que despercebidos. O uniforme, o horário de entrada e saída, o enfileiramento e o aspecto hierárquico da instituição; tudo isto e muito mais provém do modus operandi industrial. Ao final, o aluno acaba invariavelmente sentindo-se e sendo tratado como um operário, e se vê como que obrigado a cumprir um regime semiaberto durante boa parte de sua vida. São ignorados o ritmo e a dificuldade de cada um e qualquer manifestação de sua personalidade (como roupas diferentes, por exemplo) é reprimida, fazendo com que o estudante abra mão de sua bela, porém imperfeita humanidade para se adequar aos moldes de um sistema que trata todos como computadores a serem programados.
    Como se já não fosse motivo suficiente para o estudante criar uma certa repulsa ao sistema educacional, existe ainda a inaplicabilidade do conteúdo escolar na vida cotidiana, o que configura a maior falha do ensino básico como um todo. Sob o ponto de vista de um aluno comum, quase toda a matéria que lhe é ensinada na escola é absolutamente abstrata e dissociada da realidade. É incabível cobrar que o conteúdo seja bem recebido ou sequer absorvido se, na mente do estudante, a matéria é completamente inútil em termos práticos. Em vez de aprender, ele na verdade decora o conteúdo, muitas vezes na véspera da prova, para esquecê-lo logo depois de conseguir a nota. O processo de "aprendizagem", com ênfase nas aspas, torna-se mecânico, desgastante e improdutivo. O resultado? Os professores fingem que ensinam, os alunos fingem que aprendem e, ao final do curso, estes últimos recebem um diploma que revela uma função equivalente à de uma máquina de xérox, pois foi a única coisa que fizeram durante todo o período escolar.
    É claro que o pouco investimento — e sobretudo o mau uso deste investimento — na educação possui uma parcela de culpa na defasagem do ensino, mas seu peso é muitas vezes superestimado. Apesar de o ensino privado possuir uma certa vantagem qualitativa, a disponibilidade de maior recursos é apenas motivo parcial para esta discrepante diferença em relação ao público. Após dois anos estudando numa escola particular, percebi que a metodologia de ensino dos professores é diferente. Em via de regra, a preocupação maior destes é transmitir a matéria conversando com os alunos, usando a oralidade como base e o material didático como apoio opcional, e não o contrário, como ocorria na escola pública.
     Contudo, faz-se necessário ratificar que mesmo as escolas privadas não fogem à regra quanto a vários tipos de mentalidade citados nos parágrafos anteriores, como na mecanização do aprendizado, na organização hierárquica ou na padronização em formato industrial.
    O cerne da educação brasileira, seja ela pública ou privada, é fruto de uma imaturidade pedagógica sem tamanho. Tratam o aluno como criança e esperam que ele aja como adulto. Isso por si só já diz muito. Além disso, os pedagogos que comandam as diretrizes do MEC insistem em priorizar problemas levianos — através de mecanismos engolfados em burocracia inútil — e mascarar a situação em vez de dar enfoque aos verdadeiros problemas que tanto causam os déficits de ensino.
    A educação pode até ser a esperança para o futuro do Brasil, mas para que isto aconteça é preciso muito mais que trancafiar crianças entre quatro paredes por mais de dez anos e esperar que elas magicamente criem interesse em aprender. Mudar o país por vias educacionais requer constantes críticas a um disciplinamento antigo e sobretudo ineficaz. Devem ser vistas como bem-vindas propostas novas e funcionais que, apesar da incerteza que elas podem carregar, abrem espaço para discussões de cunho progressista visando sempre ao benefício da própria sociedade. É necessário deixar a arrogância pedagógica de lado e admitir que as ruínas de um sistema falho estão cada vez mais à mostra.

Chave

Já dizia Clarice
Não a ruiva, de papel
Mas a que antes foi de carne,
osso e pensamento
E que hoje é só osso e pensamento.

Já dizia-me ela,
a Clarice do meu eu
lírico, interior:

"Por que te importas?
Que te importas?

Cá estou aqui,
tênue linha do real e do irreal.
Pois que ainda assim
Tens em mim e somente em mim
a resposta."

Busco conforto, sim
Mas busco antes compreensão
E sobretudo reconhecimento
Dos que serão, um dia
portadores da chave.

A dúvida, portanto
Ressoa como as poderosas engrenagens
Em cujo ruído fora aberta.

— RESENHA —

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

    Desde seu lançamento, em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (do francês "Le fabuleux destin d'Amélie Poulain") já a princípio instigava o expectador quanto a seu título enigmático, o qual faz jus à peculiar misteriosidade do longa-metragem. Não é para menos: das 109 nominações aos mais diversos prêmios do cinema internacional, o filme venceu 54.[1] A crítica aplaudiu de pé o roteiro e a direção de Jean-Pierre Jeunet, que também desenvolveu outros famigerados filmes franceses.

   Já nos primeiros minutos, Amélie, a protagonista, revela-se como uma figura graciosamente estranha. Por ter pais frios e distantes, está habituada ao seu próprio isolamento. Não há abraços ou manifestações de carinho; as únicas ocasiões em que recebe atenção são as que seu pai, com um estetoscópio, realiza o exame clínico mensal. Por não estar acostumada com este tipo de contato tão direto, Amélie tem seu coração disparado; disto, seu pai conclui uma anomalia cardíaca. Sua mãe, professora severa e carregada de perturbações neuróticas, decide que Amélie deve ter aulas em casa, em decorrência do falso diagnóstico.
    A parte graciosa disto tudo é que a menina, sempre muito imaginativa, refugia-se num mundo que ela própria criou. Enxerga a realidade de maneira ímpar, de modo que seu único amigo é um peixe. Porém, a estranheza não acaba aí: este peixe, que de fato existe, é neurótico e tem instintos suicidas, pulando muitas vezes para fora do aquário e causando um pandemônio na família.
    A mãe acaba tendo uma morte ridícula e cômica, na qual uma turista pula de cima de uma igreja para se matar e acaba esmagando a professora sistemática. Mas Amélie não se deixa abater; continua sua fase de crescimento, apesar de ver-se cada vez mais distante de seu pai, que aos poucos se isola do mundo.
    O longa é de uma sensibilidade sem tamanho. A simplicidade com que tudo é retratado encanta qualquer um. Cada personagem tem um pouco de seu íntimo revelado ao expectador, sendo expostos seus gostos e desgostos cotidianos. Isso permite que eles [os personagens] se aproximem de quem quer que esteja assistindo. Os pequenos prazeres da vida são destacados sobretudo por Amélie, que adora, por exemplo, enfiar a mão num saco de cereais; gosto este do qual confesso partilhar. Que jogue a primeira pedra quem nunca se deliciou mergulhando o braço num saco de sementes de girassol.
    É fascinante não só a história, mas também o modo como ela é retratada. Jeunet fez uso de ângulos dinâmicos e principalmente inusitados, além de uma edição de luz espetacular na qual determinadas cores se tornam mais realçadas e outras mais opacas.
    Não costumo falar de trilha sonora, mas deixar de mencionar a coletânea musical de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain seria um insulto à resenha. Yann Tiersen, compositor francês, recebeu renome internacional após desenvolver a trilha sonora do filme. As músicas são contagiosas e resgatam muito das últimas décadas do século XX na França, que é o cenário histórico-temporal no qual se passa o longa. Das cinco indicações a prêmios de cunho musical, as de Yann venceram quatro. A música tema, J'y Suis Jamais Alle, tocada diversas vezes ao decorrer das cenas, é conhecida até mesmo por quem nunca assistiu o filme. Deixo aqui o link para os que desejarem ouvi-la.
    E como possuo uma certa propensão a músicas tocadas inteiramente em piano, tomo a liberdade de disponibilizar junto ao texto minha melodia preferida da trilha sonora, Comptine D' un Autre Ete. Vou ser honesto e confessar que não faço ideia o que o título quer dizer, afinal, não falo francês. No entanto, ela não é minha favorita ao acaso. A música em questão permite que fechemos os olhos e esqueçamos de absolutamente tudo ao nosso redor. Bom, vou me abster de mais explicações, pois o som fala por si só:
Comptine d'un autre été : L'Après-midi by Yann Tiersen on Grooveshark     Talvez por tratar-se de uma comédia romântica — embora seja muito mais que isso — existe ainda o envolvimento platônico de Amélie com um rapaz tão misterioso (para não dizer estranho) quanto ela. É interessante assistir a evolução psicológica que a protagonista precisa passar para desafiar sua timidez e só então conseguir livrar-se da introversão para assim "correr riscos"; o que, no caso, significa revelar-se para o amado.
     Há muito mais para contar; claro que há. Um gnomo que viaja o mundo, um álbum de fotos picotadas de um homem suspeito de ser um "morto que não deseja ser esquecido", planos de vingança contra um maldoso vendedor de verduras de modo a fazê-lo pensar que possui distúrbios psiquiátricos, e muito mais. Tudo isso em nome da decisão que Amélie tomou de iniciar singelos, porém significativos altruísmos anônimos.
     Sempre vão existir aqueles que demonstram indiferença ao assistir o longa. Estas pessoas são, por linhas gerais, as mesmas que buscam somente filmes com muita ação e explosões; as mesmas que não sabem valorizar a delicada retratação da psique humana. Para absorver a essência da obra, é preciso observar e sobretudo compreender o olhar carregado de expressividade de Amélie, no qual gentileza e força se misturam para formar uma apaixonante incógnita.
     O Fabuloso Destino de Amélie Poulain definitivamente não é um daqueles filmes previsíveis que você assiste já sabendo o que vai acontecer. Segui a recomendação de muitos amigos e separei pouco mais de duas horas do meu fim de semana e, devo dizer, não me arrependi.

Incertas certezas
(e vice-versa)

    Talvez uma das maiores mentiras que nos são contadas quando crianças é a de que a ordem dos fatores não altera o produto. Os que dizem isto decerto nunca leram Machado de Assis, pois quem leu, bem sabe a diferença entre um autor defunto e um defunto autor. Existe ainda a questão do velho amigo que não é velho, além de muitos outros exemplos que não vêm ao caso. O título, por outro lado, não só vem ao caso como também segue o mesmo padrão de ordem/sentido.
    Estou cansado das pessoas que têm incertas certezas; das que arrogam verdades absolutas e para isto fazem o uso, no melhor dos casos, da voz alta, como se o volume pudesse dar alguma autoridade ao que dizem, ou até mesmo do ad hominem. Digo "no melhor dos casos" pois em outras épocas o instrumento de propriedade argumentativa fora a brutalidade em sua forma mais violenta. Afinal, a Terra era o centro do universo e dá-lhe Fogueira Santa a quem não aceitasse isso.
    De incertas certezas a História já está carregada e disto o mundo não precisa. Certas incertezas, por outro lado, são bem-vindas. Ter dúvidas é reconhecer nossa defeituosa humanidade e dar o primeiro passo em direção ao conhecimento. É preciso acolher as incertezas e buscar saná-las com humildade. Ter o benefício da dúvida é poder dizer "não sei" sem medo, pois somos humanos e estranho seria se tivéssemos tudo na ponta da língua.
    Arrisco que talvez todo o extremismo pudesse ser evitado se as pessoas levassem suas incertezas mais a sério; se colocassem a arrogância de lado por um minuto e cogitassem a natural possibilidade de estarem enganadas. Se assim fosse, teríamos menos sangue e mais humanidade nas páginas dos livros de História.

Rachel Sheherazade e as polêmicas

    Em 2011, bombava nas redes sociais um vídeo do comentário jornalístico transmitido pela TV Tambaú, da Paraíba, no qual uma figura até então desconhecida "revelava algumas verdades sobre a fantasia do carnaval", como foi postulado. No vídeo, havia críticas ácidas à comercialização da festa popular, ao uso indevido do dinheiro dos cofres públicos e ao governo hipócrita que investe pesado em infraestrutura (ambulâncias e policiamento) no carnaval quando faltam os mesmos investimentos para a população carente.

    A repercussão serviu como degrau de ascensão da jornalista, que logo ganhou nome e uma cadeira na bancada do SBT Brasil. Desde então, Rachel Sheherazade tem dado o que falar com suas opiniões e sua maneira pseudo-onisciente de arrogá-las.
    Talvez uma de suas maiores polêmicas tenha sido o comentário sobre a ação do Ministério Público para a retirada da frase "Deus seja louvado" das cédulas de real. No entanto, como este é um assunto bastante delicado que dá margem para uma longa discussão, limitarei-me apenas às considerações mais pertinentes e deixarei o restante para outro texto.
    Na próxima segunda-feira, no dia 24 de fevereiro de 2014, completará exatamente 123 anos a Constituição de 1891. Esta, porém, não é uma Constituição qualquer. É especial, pois foi ela que oficializou de fato a transição do Brasil Monarquia para o Brasil República. E talvez um dos aspectos mais notórios disto foi algo indispensável a qualquer democracia genuína: a divisão entre Estado e Igreja.
    Esta postura secular assegurou aos cidadãos que o Governo seria imparcial, garantindo assim a liberdade religiosa da qual precisavam tanto todas as pessoas que não eram católicas. É claro que, após praticamente 400 anos de dominância da Igreja Católica Apostólica Romana, nossa cultura continuaria marcada por seus costumes e tradições. Os dias da semana, o calendário gregoriano, os feriados, datas comemorativas e a própria inscrição na cédula. Desta forma, a laicidade do Estado ficou, pelo menos em maior parte, na teoria.
    O problema, penso eu, não está em haver tradições. As tradições constroem uma espécie de identidade cultural importante a todo tipo de sociedade. O problema está, na verdade, em impor suas tradições a todas as pessoas. Você pode decorar sua casa com belas imagens de santos e santas, como fazem os católicos, ou abster-se de comer carne suína, como fazem os judeus; e assim por diante. O que você não pode é querer forçar, através da lei, que todas as demais pessoas partilhem de seus preceitos.
    Estado laico não busca negar a religião de ninguém; muito pelo contrário! Quando a laicidade é verdadeira, a liberdade religiosa de todos é respeitada. E vale lembrar que não estamos falando aqui de Israel, mas sim do Brasil; um país pluricultural onde a diversidade é — ou deveria ser — há muito tempo vista como parte da dinâmica populacional.
    Só em 2010, a parcela não-cristã da população chegava a 13%. Pode parecer pouco, mas isso implica em mais de 25 milhões de pessoas. E considerando que a frase "Deus seja louvado" é uma clara referência à entidade bíblica, por mais que isso não incomode particularmente a minha pessoa, a presença da frase no dinheiro nacional acaba sim com o princípio da neutralidade do Estado em relação às religiões. Os que dizem que este tipo de análise é "falta de louça para lavar" não diriam o mesmo se a frase inscrita fosse "Alá seja louvado". É falta de empatia, de por-se no lugar do próximo e de ver não somente o que te desrespeita, mas o que desrespeita o próximo. E pelo que bem me lembro, pensar no próximo é justamente um dos ensinamentos mais importantes de Jesus; ensinamento este que muita gente anda esquecendo.
    O curioso é que, meses depois, Sheherazade se revoltou com as vaias ao Pastor Marco Feliciano e, em defesa ao líder religioso, argumentou que o Estado é laico e que "um homem não pode ser condenado por suas crenças, nem discriminado por causa delas". Defende que o pastor não possa ser vaiado por suas opiniões discriminatórias, mas não liga se o mesmo pastor em questão tentar aplicar tais opiniões no Congresso, impondo seus valores a todos os brasileiros, inclusive aos 25 milhões que não possuem as mesmas crenças que ele. Chega a ser estranho que a imparcialidade religiosa do Estado é defendida por Sheherazade apenas quando lhe convém.
    Mais engraçado ainda é que, no mesmo vídeo, Rachel insiste piamente na liberdade de expressão do pastor, mas não dá a mínima para a dos manifestantes. Do mesmo modo, fala em tolerância. Entretanto, a única "intolerância" com qual a jornalista parece importar-se é a das vaias; mas a intolerância de Marco Feliciano não parece ser problema. Aí pode. Para mim, isto não passa de dissonância cognitiva transvestida de discurso progressista fajuto.
    Um pastor pode sim expressar suas opiniões. É só não tentar forçar suas crenças goela abaixo da população por meio de intervenções legislativas, como Marco Feliciano faz. Além disso, vale pontuar que pastor nenhum está acima da lei. Suas pregações são asseguradas pela Constituição, sim, mas também estão sujeitas às mesmas regras de respeito à dignidade humana. Críticas se fazem não só bem-vindas como também necessárias.
    Fora isso, outro caso recente que provocou muito rebuliço nas redes sociais foi a declaração de Sheherazade do uso de uma suposta "legítima defesa coletiva" como justificativa para pessoas que fizeram justiça com as próprias mãos ao amarrar, despir e dar pauladas no "marginalzinho do poste", como ficou conhecido o adolescente suspeito de roubos.
    O comentário jornalístico teve duras consequências. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro chegou a divulgar uma nota de repúdio a Rachel Sheherazade e a indicar graves violações ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. A confusão foi tanta que a própria Rachel teve de retratar-se ao vivo, esclarecendo que é "uma pessoa do bem" e que é contra a barbárie.
    Quanto a este tema em específico, creio que caiba uma análise mais cuidadosa. As opiniões gerais em relação a tal declaração me preocupam muito, pois o que tenho visto é um maniqueísmo muito grande. De um lado, estão os que a apoiam completamente e de outro os que a demonizam. É preciso questionar sim; no entanto, é preciso cautela para não discordar de tudo cegamente.
    Rachel diz que o Estado é omisso, a Polícia desmoralizada e a Justiça falha. "O que resta ao cidadão de bem?", pergunta ela. Com efeito, esta é uma questão que não só pode como deve ser levantada. Até que o Governo recobre sua legitimidade cumprindo verdadeiramente seu papel para com a população, é natural que a as pessoas partam para medidas desesperadas. As truculências vistas nos noticiários ultimamente não são outra coisa senão reflexo destas medidas, já que a população não encontra outra saída para o problema. Não que as barbáries sejam aceitáveis ou corretas dum ponto de vista legal ("legítima defesa coletiva" é uma ova), mas se foi isto que Sheherazade quis dizer — sobre a falta de alternativas — quando alegou que os atos dos vingadores foi até compreensível, então concordo com ela neste ponto. Errado, abominável, mas compreensível.
    Porém, minha concordância com a jornalista se encerra aí. Ela continua: "E para o pessoal dos direitos humanos, eu lanço uma campanha: adote um bandido". Talvez fosse melhor pensar um pouco antes de sair por aí vomitando noções limitadas ao senso comum. Não somos nós quem devemos adotar os bandidos, e sim o Estado, promovendo oportunidades e fornecendo educação de qualidade. Quando não o faz, quem adota o bandido é o próprio crime. É como comentei no meu texto sobre a redução da maioridade penal: a própria necessidade de roubar — desencadeada pela falta de condições e de oportunidades dignas — coloca na cabeça destes indivíduos que o mundo é seu inimigo e se encarrega de ensiná-los como se virar. E fazendo uso da mesma moeda que a própria Rachel usou: recorrer ao crime para sobreviver é errado, mas é compreensível.
    Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. (...)
    Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom (mas não tão justo também...) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
Capitães da Areia (AMADO, Jorge)
Rachel insiste piamente na liberdade de expressão do pastor, mas não dá a mínima para a dos manifestantes.
— Não sejamos uma Sheherazade! Se há liberdade de expressão para um, que haja para todos!
    Por fim, é fundamental ter em mente que o progresso não poderá ser atingido através de demonizações — como se absolutamente todas as declarações da jornalista não prestassem, ignorando, por exemplo, sua crítica aos pastores que lucram às custas de seus fiéis ou seu elogio à banda Legião Urbana.
    Além disso, por mais reacionárias que sejam as opiniões de Sheherazade, ela tem todo o direito de compartilhá-las. Tomo a liberdade para ser clichê e citar Voltaire: "Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las". Querer calar a oposição é sinal de fraqueza e, como cheguei a dizer em outro texto, não precisamos de mais uma ditadura manchando a história do nosso país.