— CONTO —

Viver para trabalhar

     Sueli odiava acordar às seis em ponto. Correção: Sueli odiava acordar. Fazia-o primeiro por necessidade, pois os relatórios do escritório não iriam fazer-se sozinhos, e segundo porque quanto mais rápido saísse de perto de seu marido, melhor. Jorge e ela eram casados havia vinte e nove anos; detestavam-se havia dezesseis.
     Quando se dirigiu ao banheiro para realizar as necessidades matinais, encontrou a tampa do vaso sanitário levantada. Embora assim estivesse todas as manhãs, aquilo não deixava de irritá-la nem mesmo por um dia. Aliás, várias eram as coisas que incomodavam-na. Suas rugas no espelho que teimavam em dedurar sua idade; o porteiro do prédio que fazia questão de dar bom-dia, como se sua existência fosse minimamente significante para Sueli; o malabarista de semáforo que, mesmo não sendo requisitado, insistia em realizar seu show e tinha a petulância de cobrar por ele; pessoas que demoravam na fila da cafeteria por estarem indecisas sobre qual tipo de cappuccino pedir; o atendente que sorria de orelha a orelha dizendo: "Volte sempre!".
    Este último item era especialmente desagradável para Sueli pois, pelo princípio social de reciprocidade (ainda que falsa), ela era obrigada a sorrir de volta. Seria muito mais aprazível se o atendente em questão simplesmente cumprisse o trabalho ao qual foi designado, em vez de abrir um sorriso cínico a cada cliente.
     Café tomado. Lá ia ela para mais um dia de trabalho. O único lado bom de fazer parte de um grande escritório era ter um bom lugar para estacionar o carro; de resto, não se aproveitava nada: ter que conviver com colegas de trabalho detestáveis que só sabiam falar de si próprias e de suas ambições medíocres; agradar e obedecer seu superior, cujo único mérito necessário para ter chegado àquele cargo fora ter um parentesco com o diretor da empresa; preparar documentos carregados de linguagem técnica para resolver problemas inúteis de pessoas com as quais sequer se importava.
    Trabalho. Enxaqueca. Mais trabalho.
    O relógio parecia estar de mal com Sueli, pois andava a passos de tartaruga. Quando finalmente deu o horário, aproveitou que havia uma farmácia ali perto e comprou o primeiro tarja preta que encontrou.
    Chegou em casa e foi recebida por Jorge não com um "Como foi seu dia?", mas com um "Cadê a janta?". Sua resposta, pouparemos o leitor de saber, por razões éticas. Deu as costas e foi até o quarto observar sua coleção de sapatos, sua única fonte de tranquilidade.
    Sueli nunca parou para pensar o que estava fazendo com sua vida. Trabalhava, trabalhava e trabalhava, afinal, era preciso pagar as contas. Ademais, assistia Zorra Total aos sábados, lia e concordava com colunistas da Veja, visitava os parentes dos quais não gostava nos finais de ano e viajava para algum lugar costumeiro quando sobrava algum dinheiro.
     Ainda que de forma intuitiva, Sueli mantinha uma opinião de cunho estoico no sentido de justificar o conformismo como sendo tão natural quanto a inércia. Conduzia seus dias de forma mecânica, sem ter consciência disso. Mas tudo bem, porque, para ela, felicidade só existia em conto de fadas. Quem tentasse fugir da "vida real" não passava de um tolo.
    Ao fim, Sueli nunca conheceu a vida real, tampouco vida alguma. Ao seu enterro, só uma pessoa compareceu: o porteiro de seu prédio.