Coisas

    Muitas vezes, as coisas da vida podem não ser lá muito agradáveis. Não gosto, por exemplo, de pessoas que teimam em levar seus bebês a determinados eventos. Neste caso, a Lei de Murphy por si só já garante que estes mesmos bebês chorarão justamente nos momentos mais importantes, como numa sessão solene. Não gosto tampouco dos cachorros das casas vizinhas que latem de forma tão incessante a perder o fôlego e, não se contentando com isso, nos fazem perder o sono, nem de vendedores que passam longos minutos fazendo propaganda e insistem em "enrolar" o máximo possível antes de finalmente dizer o valor do produto. Acho peculiarmente infeliz a mania que algumas pessoas possuem de Escrever Cada Palavra Com A Inicial Em Letra Maiúscula. Não gosto de gente que exige respeito através do medo. Não gosto de desinformação, nem de "achismos" e muito menos de preconceito disfarçado ("Não tenho nada contra, mas...").
    Não suporto buzinas. Além de inúteis — pois na imensa maioria das vezes já sabemos que estamos atrasados —, elas só fazem é aumentar ainda mais o desespero e a irritação. Elas são a representação sonora da impaciência do século XXI.
    Não. Eu gosto é de pessoas espontâneas, de conversas autênticas, de coisas que me façam sorrir. Gosto de aromas que tragam consigo lembranças, e de sabores para fechar os olhos e aproveitar cada mastigada. Gosto de falas pausadas, de palavras em uma tranquila sintonia, de tempo para ler e respirar. Gosto de participar de conversas paralelas durante o almoço de domingo com a família, e também gosto de ouvir o silêncio noturno quebrado somente pelo cri cri dos grilos. Gosto de comer sem culpa, de ler na varanda, de fechar os olhos e apreciar a inabalável beleza do luar em forma de som. Gosto de coisa descomplicada, de prosa corrida e principalmente despretensiosa, como esta aqui.

Humor às avessas

    Uma coisa é fato: o humor que vemos hoje e o de algumas décadas atrás são extremamente distintos. O atual perdeu quase completamente aquele espírito de Os Trapalhões, de Mazzaropi. Com exceção de um ou outro programa como Zorra Total, é ácido e um tanto quanto controverso.
    Talvez um dos principais motivos que fazem com que o assunto divida tanto as opiniões seja o fato de que as comédias que mais fazem sucesso, em especial as do tipo stand-up, adquiriram uma natureza que vai além do caricato tradicional a personagens fictícias. Agora, elas trabalham de modo a atacar pessoas reais de uma maneira particularmente agressiva, baseando a acidez da crítica humorística, na maioria das vezes, a características como etnia, porte físico, orientação sexual, nacionalidade — e até regionalidade, como é o caso das piadas de gaúchos e nordestinos — e assim por diante.
    A explicação, segundo Idelber Avelar, um conceituado professor de literatura1, é que "a piada preconceituosa se ancora em determinados valores solidificados na sociedade". Ele completa, ainda, que este é o humor fácil, pois estas ideias já estão montadas na mentalidade popular.
    O mais assustador, porém, é que este tipo de humor faz sucesso. Isso porque, como diz Laerte, ele [o humor] "dialoga com o preconceito das pessoas". Inclusive, muitos veem nas piadas uma bela oportunidade para mascarar pensamentos grotescamente desumanos, na tentativa de fazer com que eles pareçam naturais. A infeliz fala de Rafinha Bastos de que "o estupro às mulheres feias não deveria ser encarado como crime, e sim como um favor", por exemplo, exterioriza a ideia que, sinto dizer, uma considerável parcela da sociedade brasileira possui. Além de não ser sequer engraçado.
    Chega a ser patética a performance de algumas pessoas que, na busca incessante de fazer comédia custe o que custar, atropelam o bom senso e ignoram até mesmo a mínima dignidade humana. Um claro exemplo disto é a Marcela Leal que, com seu "humor", ridicularizaria até mesmo a própria avó se isso arrancasse algumas risadas constrangidas da plateia.

    Não estou propondo impor limites severos aos artistas que trabalham neste segmento. Isto seria pura censura, e não precisamos de mais uma ditadura manchando a história da democracia brasileira. A liberdade de expressão é importante — e como é! No entanto, isso não significa que as pessoas devam ter carta-branca para humilhar e discriminar livremente umas às outras. Você pode muito bem, por exemplo, ter a opinião de que os negros são inferiores aos brancos. Você tem todo o direito de ser um grande babaca. O que você não pode, porém, é disseminar suas ideias arcaicas como se isso fosse correto, sem arcar com as consequências. Seus direitos acabam quando começam os do próximo.
    Alguns podem contra-argumentar dizendo que é preciso combater não as piadas, e sim as realidades que estão por trás delas. Ora! Essa dissociação não se justifica, pois estas duas coisas não são distintas em nível algum! Pelo contrário: as palavras (no caso, as usadas para fazer humor) são justamente a maneira que a discriminação encontra para se propagar. Portanto, qual a maneira de lutar contra esta discriminação se não pela crítica às palavras?
    Outro ponto a ser esclarecido é que a comédia sempre — sempre — se apresentará em forma de crítica. Não é este o problema. O problema é o que ela critica. Ela, sendo uma forma de arte, desempenha um papel fundamental na formação e divulgação de ideias. Embora sutil e muitas vezes subestimado, é bastante poderoso o potencial que os humoristas possuem. Criar um humor que não atende sua função social seria subvertê-lo, fazendo com que ele se torne, deste modo, um humor às avessas. Num cenário político no qual há tanta coisa errada para ser satirizada e depreciada, o bom senso não permite que haja espaço para piadas de mau gosto sobre o bebê de Wanessa Camargo. Pelo menos não sem as devidas represálias.
    Cabe dizer ainda que, se o humor pode disseminar paradigmas sociais, também pode quebrá-los. É claro que não é uma tarefa fácil. Se criar humor inteligente já exige criatividade, tratar questões sociais de forma leve e engraçada exige ainda mais. Não é uma questão de ser politicamente correto, nem de mero moralismo, e sim de mobilidade social, de empatia. Fazendo uma analogia ao belíssimo poema Intertexto de Bertold Brecht: importe-se com os outros antes que seja tarde.
    Para finalizar, é essencial destacar que para tudo há limites. O humor não se foge à regra. Se existe liberdade para um comediante fazer seu trabalho, também deve haver liberdade para a repreensão. As coisas não funcionam numa via de mão única. Caso um humorista se meta a falar a respeito de alguém ou de determinado grupo de pessoas, seja da maneira que for, ele está automaticamente sujeito à reação do coletivo e, sobretudo, a uma possível resposta judicial. Não aceitar isto seria colocar a profissão de humorista num pedestal e endeusá-la. Afinal, até onde eu sei, nenhum humorista está acima da lei.

||| Atrás das grades |||

    A sociedade é regida por padrões endurecidos que foram construídos legal e moralmente ao longo dos séculos. E por mais que a maioria dos preceitos seja simbólica, estes não deixam de ser reais. Foram encrostados em nossa mentes desde muito cedo, de forma a torná-los, de certa forma, inquestionáveis.
    Um curioso exemplo disto é a ideia que temos de punição. Pelo menos do ponto de vista social, quando alguém comete um delito, convencionou-se que este alguém precisa sofrer as consequências. Essa concepção independe da natureza do regime; mesmo numa sociedade verdadeiramente democrática, na qual é impraticável a violação à vida por parte do Estado, existe a privação da liberdade. Afinal, é assim que a justiça deve funcionar. Certo? Nem tanto.
    É estranho pensar na falta de profundidade da empatia de algumas pessoas. Reside, na maior parte delas, o equivocado pensamento de que absolutamente tudo decorre de escolhas. Se assim fosse, a relação "causa e consequência" estaria sendo aplicada corretamente. O problema, porém, encontra-se justamente nisso. Generalizando — e, portanto, desconsiderando casos excepcionais —, ninguém rouba simplesmente porque quer.
    Soa-me extremamente infantil a mentalidade popular na qual percorre a ideia de que "Fulano optou pela vida do crime". Chega a ser triste ter que dizer o óbvio, mas agir em desconformidade com a lei não é uma mera escolha. As pessoas não acordam e decidem, por livre e espontânea vontade, serem criminosas. Na esmagadora maioria das vezes, essas atitudes derivam da necessidade. Isto é fruto de um sistema capitalista, corrompido e sobretudo mal administrado, acrescido aos fatores históricos dificilmente dissociáveis. A situação, brilhantemente ilustrada por Andrew Niccol n'O Preço do Amanhã, pode ser explicada de forma simples: para poucos serem extremamente ricos, muitos precisam ser miseravelmente pobres.
    O que fazer, então? Deixar impune os que desrespeitam as leis de boa convivência social? É óbvio que não. Perceba que não estou questionando, em nenhum momento, o fato de haver penalidade. Ela decerto deve existir. O que está em pauta é, na verdade, o conceito e principalmente a finalidade que se tem de punição.
    Peguemos a redução da maioridade penal, por exemplo. As pesquisas mais recentes revelam números assustadores quando dizem respeito à porcentagem de brasileiros a favor da redução: 92,7%. Isto significa que pelo menos 9 em cada 10 entrevistados acreditam veemente que inserir o jovem no sistema carcerário comum é a solução. A pergunta que fica é: vai resolver?

    Estão enganadas as muitas pessoas que cultuam, direta ou indiretamente, a ideia de que o isolamento dos indivíduos criminosos com a sociedade é a resposta. Em primeiro lugar porque, quer concordemos ou não, é fato que o tempo de prisão em nosso país não se estende significativamente; e em segundo, cadeia não é sinônimo de tratamento psicológico. Muito pelo contrário: muitos dos que lá entram, saem ainda piores. De nada adiantaria propor "punições mais severas", se o mais importante, que seria fornecer oportunidades igualitárias de trabalho após a saída para impedir que os ex-presidiários sejam impelidos à vida do crime novamente, não acontece.
    Diante da negligência estatal e da falta de empatia de ambas as partes — tanto da população em geral quanto dos que vivem à margem da lei —, é inevitável um processo com o qual infelizmente estamos habituados: a pessoa nasce e cresce rodeada de péssimas condições, é induzida ao crime (roubo, latrocínio e principalmente tráfico), entra no sistema carcerário, aprende novas técnicas e desenvolve a ideia de que o mundo é seu inimigo, e assim dá início a um ciclo vicioso.
    É claro que soluções rápidas e eficientes são completamente utópicas. Porém, fica evidente que o investimento em força bruta (como no treinamento de combate militar aos criminosos) atenuará o problema apenas temporariamente, mas resultados a longo prazo só poderão ser alcançados quebrando o ciclo e, seguindo o bordão popular, arrancando o mal pela raiz. Isto é, investindo verdadeiramente no que nos é de direito: saúde, segurança, lazer, trabalho e educação de qualidade. Você realmente acha que é mera coincidência países como a Finlândia liderarem os rankings de ensino do mundo e ao mesmo tempo possuírem índices de criminalidade tão baixas?
    No entanto, cabe pontuar que o grandioso educador Paulo Freire tinha razão quando disse que "seria uma atitude muito ingênua esperar que os dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças". Se queremos mudanças, é preciso que as cobremos, pois elas não serão facilmente cedidas. Os problemas sociais continuarão existindo enquanto há pessoas que insistem em vê-los através de um ponto de vista simplista e arcaico, propondo soluções fáceis ("Joga na cadeia!"), porém ainda mais agravantes.

Polícia Militar: os dois lados da moeda

    Diante desse cenário todo de manifestações e mobilização popular, me segurei para não escrever algo a respeito. Em primeiro lugar, porque não tinha certeza sobre o que discorrer. Não havia necessidade alguma em relatar os fatos ocorridos (como a famigerada "revolução dos vinte centavos") várias e várias vezes, enfatizando a indignação da população e todas as outras coisas óbvias; os telejornais e comentaristas já faziam isso muito bem sem mim. Em segundo, estava esperando todo o fervor passar para só assim poder analisar a questão com mais clareza, dispondo de um panorama que abrange desde o início até o apaziguamento dos protestos.
    No entanto, sinto que se há um bom momento para tratar da situação, o momento é agora. Cinco minutos com a TV ligada no noticiário de horário nobre bastam para nos darmos conta que a questão é emergencial, e requer um cuidado especial.

    Toda sociedade é repleta de conflitos gerados por divergências de pontos de vista. A que vivemos atualmente não é exceção, ainda mais quando nos referimos à segurança pública. Inevitavelmente, esta está diretamente ligada à Polícia Militar. Contudo, destaco que me limitarei a abordar somente o que me concerne — isto é, a PM do Estado de São Paulo —, pois penso estar apto a falar somente acerca do que conheço.
    A "primavera brasileira" (se me permitem esta analogia à primavera árabe) vem sendo marcada, dentre outras coisas, por enormes demonstrações de violência gratuita por parte de alguns policiais militares. Algumas pessoas ousam até descrever as cenas como "policiais à espreita, preparados para nos atacar ao mínimo motivo". Os que sentiram na pele (ou, no caso, nos olhos) as bombas de gás lacrimogênio possuem autoridade para confirmar a experiência vivida por muitos, principalmente na grande São Paulo.
    Como se já não bastasse, muitos dos nossos governantes fizeram uso de seu poder de modo a tentar criar "adaptações" (para não dizer violações) constitucionais, tais como as PECs que proíbem os manifestantes de usar máscaras, produtos que retardam as bombas de efeito moral e, por mais absurdo que possa soar, celulares e filmadoras. Tendo sido aprovados ou não, estes projetos são um insulto às liberdades individuais que todo cidadão deveria, ao menos teoricamente, possuir.
    Isso tudo somado ao abuso de poder e ao explícito desprezo pelos direitos humanos por parte dos militares fez com que esses últimos perdessem cada vez mais a confiança da população, especialmente dos jovens, trazendo à tona assim os recém-despertados debates sobre a desmilitarização da Polícia. Entretanto, entrar neste mérito significaria fugir do escopo, então retenho-me às desavenças decorrentes dos confrontos entre militares e civis.
    Apesar da própria Constituição Federal ressaltar que a Polícia Militar existe para proteger o cidadão, resquícios do regime militar de 1964 mantêm a concepção de enfrentamento, criando assim a lógica de que todo manifestante é suspeito e, portanto, inimigo. Isto é inerente também à mentalidade construída pelo regime de caserna vivenciado pelos policiais militares, tornando muitos deles avulsos à realidade do brasileiro comum. Cria-se então uma dualidade "militar/civil", dando a falsa ilusão de que os policiais não são civis, quando na verdade são.
    Infelizmente, tem-se como fruto disto um caráter corporativista que surge na Polícia, fazendo com que ela sirva a seus próprios interesses em vez de servir a população. Por mais convincentes (ou não) que possam parecer os contra-argumentos dos grandes generais, uma base de disciplina e hierarquia militares influencia sim na função civil da corporação.
    Porém, o mundo não é simplista como uma história em quadrinhos; ele não é feito de mocinhos e vilões. Existe uma complexidade muito maior por trás do pano, e vários fatores devem ser considerados antes de tirar qualquer conclusão. É de crucial importância ver o outro lado da moeda. Como toda instituição, a PM é constituída por pessoas distintas, cujas ideias progridem com o passar dos anos. Pensar nos membros da corporação como uma massa uniforme e estagnada de pensamentos e ideologias é um insulto ao bom senso.
    Nos colégios militares, há uma tentativa evidente de alterar a mentalidade herdada pela ditadura (de que o civil é o "outro", o inimigo) através da educação. Os processos de seleção e treinamento envolvem diretamente questões de cunho humanistas, e refutar isto seria admitir para si a ignorância a respeito. Contudo, mudanças não ocorrem do dia para a noite. A percepção de mundo dos militares é algo profundamente arraigado, e obviamente demanda tempo para sofrer qualquer alteração significativa em níveis completos.
Uma flor nasceu na rua!
É feia, mas é realmente uma flor.
    Não só isso, mas também uma parcela muito grande dos membros da Polícia Militar é a favor da supracitada desmilitarização da Polícia. Os motivos não são difíceis de entender. A Constituição estabelece leis específicas para policiais, impedindo-os de fazer greve, submetendo-os a tribunais especiais (com punições por vezes muito mais severas) e determinando que cumpram hora extra sem pagamento adicional. Estes são apenas alguns malefícios dentre muitos, não sendo aplicados, porém, à Polícia Civil.
    Para piorar, o regimento interno da PM impede que seus membros, aposentados ou não, critiquem a corporação. Expressar-se "deslegitimando a Polícia Militar" os submete a uma sanção disciplinar, respondendo esta sob o Código Penal Militar. Penso ser importante pontuar isto, pois ainda há a adicional possibilidade de demissão, tornando compreensível a submissão dos policiais perante ordens superiores.
    É preciso ter em mente que a Polícia Militar como um todo não aprova qualquer tipo de brutalidade, e realiza através da Corregedoria Militar a apuração e a efetiva punição aos responsáveis. Generalizar toda a PM a ponto de inferir que todos os seus membros são violentos seria tão sensato quanto afirmar que todos os manifestantes estão lá para depredar. "Algumas laranjas podres podem estragar o saco inteiro."
    É claro que as intenções não mudam os fatos. Apesar dos esforços para combater a mentalidade fascista, muitos policiais continuam a desempenhar grandes atos de truculência. As gravações mostram que não são poucos os PMs que aproveitam a oportunidade de controlar as manifestações para externar seu repúdio aos protestantes (vistos todos como "baderneiros" aos seus olhos) através da força bruta.
    Além disso tudo, atribuir toda a culpa exclusivamente aos policiais, sem levar todos os outros possíveis responsáveis — sejam eles tanto pessoas quanto circunstâncias — seria de uma pobreza lógica sem tamanho. O confronto direto entre militares e civis vem de longa data. Destacam-se, por exemplo, as revoltas do período regencial (que por si só já englobam inúmeros combates) e, um tempo depois, as greves operárias da República Velha. Nas primeiras, com exceção da Guerra da Farroupilha, o Império conseguiu imperar sua vontade através das Forças Armadas, não se importando com quantos litros de sangue derramados fossem necessários. E mesmo após a Proclamação da República o Governo continuou a vencer. A própria Greve Geral de 1917, na qual ele concedeu aos manifestantes o aumento salarial que tanto exigiam, foi solucionada através de uma manobra estratégica. Embora o dinheiro tivesse caído na conta dos trabalhadores, a inflação não foi minimamente combatida pelo governo, trocando assim "seis por meia dúzia".
Tem-se como fruto disto um caráter corporativista que surge na Polícia, fazendo com que ela sirva a seus próprios interesses em vez de servir a população.
    Outro ponto importante a ser desmitificado é referente à presença da PM nos protestos. Muita gente (inclusive eu, até poucos dias) mantém uma ideia errônea de que a Polícia obedece ordens expressas do Governo para acompanhar as manifestações. Na realidade, o Governo nada tem a ver com a presença ou ausência da PM em tais eventos. A Polícia Militar é obrigada, novamente pela Constituição Federal, a estar presente em absolutamente qualquer evento suscetível a eventuais problemas, tais como as passeatas. Portanto, a menos que o Governo se considere superior à Constituição, não compete a ele mandar a PM acompanhar ou não os protestos.
    Por fim, o "certo ou errado" me parecem entrelaçados em diversos pontos. O que há é um ciclo. Vandalismo gera repressão, repressão gera vandalismo, e isto ganha dimensões assustadoras. "Quem começou" já não está mais tão claro, e mesmo que estivesse, de que importa? As pessoas que estão ali manifestando-se pacificamente, exercendo a liberdade de expressão que lhes é de direito, acabam pagando o pato. E lá se vão a liberdade, a expressão, os direitos humanos e o futuro do Brasil.

Enem: afundando a educação desde 2009

    Qualquer um que não viva numa realidade paralela certamente já ouviu falar sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Quando foi criado, em 1998, tinha como objetivo primordial avaliar a educação brasileira. Com somente 63 questões, compreendia diferentes temas abrangendo razoavelmente os principais assuntos vistos no Ensino Médio. Isso durou até 2008, pois no ano seguinte, o Ministério da Educação (MEC) criou o Sisu a fim de transformar o exame num método de ingresso em instituições de ensino superior.
    Talvez por conta da aclamação incessante que vem sendo realizada pela mídia, poucos possuem senso crítico o suficiente para reconhecer as incoerências do Enem. Não escrevo aqui como um expert, e sim como um vestibulando que, após quase três anos resolvendo os mais variados exercícios, acredita estar apto a discorrer sobre eles.
    É impossível julgar a prova inteira de maneira uniforme, uma vez que cada um dos núcleos do Ensino Médio possui uma natureza própria de questões. Porém, antes de pontuar matéria por matéria, é necessário ressaltar que o exame, no geral, perdeu sua essência. Já não se prioriza a verdadeira aprendizagem dos conteúdos propostos pela escola, mas uma capacidade de leitura sobre-humana. Sim, pois o número de questões aumentou de 63 para 180, o que é absurdo. Os que já fizeram algum simulado ou o próprio Enem sabem bem do que estou falando. Cada pergunta contém um texto imenso, muitas vezes indispensável para a obtenção dos dados. Inevitavelmente, a prova fica extremamente cansativa e não seleciona necessariamente os mais instruídos, e sim os mais resistentes.

    Quanto à parte de matemática, especificamente, fica evidente a superficialidade. Salvo raros casos, as questões se limitam a conversão de medidas (distância, área, volume, quantidade) e a gráficos supérfluos. Não estou dizendo que esta parte da prova não seja difícil. O problema é onde reside a dificuldade. A interpretação do enunciado com certeza deve ser importante para a resolução do exercício, porém, dentro de limites razoáveis. O tamanho e a sobrecarga de informações nas questões algébricas fazem da prova algo exaustivo e leviano.
    No que diz respeito aos exercícios de português, não há muito o que ponderar. O material oferecido como base (tirinhas e fragmentos textuais) é interessante, mas as questões acerca deste são óbvias e quase não requerem raciocínio algum. O exercício mais difícil que já fiz até hoje poderia ser facilmente resolvido caso o vestibulando soubesse a definição de "concomitância".
Já não se prioriza a verdadeira aprendizagem dos conteúdos propostos pela escola, mas uma capacidade de leitura sobre-humana.
    Na tentativa de justificar esse déficit de conteúdo do Enem, muitos educadores podem alegar que o caráter (escasso em conteúdo) da prova corresponde ao perfil do estudante brasileiro comum. Não há como discordar disso, tendo em vista a precariedade da educação do país. Contudo, estabelecer este nível de ensino como parâmetro para entrar na universidade só ajuda a promover o conformismo e, ainda pior, impede que haja uma cobrança pela melhora do sistema educacional.
    Este é justamente o principal motivo pelo qual as universidades mais tradicionais (USP, Unicamp, ITA, Unesp e várias outras) persistem em seus vestibulares próprios, apesar da pressão do MEC. Eles testam o verdadeiro potencial do candidato, ao contrário do Enem, que só os cansa. E ao contrário do que a oposição pode pregar, estas provas não são meramente conteudistas. A solução de grande parte dos exercícios requer, além do conhecimento da matéria, um raciocínio excepcional. Isso atribui à escola uma maior importância prática — cobrando uma melhor qualidade de ensino — e estimula o aluno a aprender, e não simplesmente a decorar. De nada adianta lembrar a lei do cosseno, por exemplo, se não saber visualizar onde e como aplicá-la. Não há maior prova disso que as incontáveis horas que passei tentando resolver questões da segunda fase da Fuvest, mesmo tendo à disposição as fórmulas e as resoluções.
    Apesar de tudo, é preciso reconhecer também os pontos positivos do Enem. Geografia, história, biologia, física e química, embora se apresentem em forma de enunciados e alternativas extensas para compensar a obviedade dos exercícios, possuem propostas um pouco mais interessantes. É possível encontrar diversas questões que cobram algum conhecimento sobre cidadania e atualidades. Proporciona ao candidato adquirir novos conhecimentos durante a prova. Esta é, decerto, uma característica bastante notável do exame, junto com a ênfase que atribuem à redação.
    Ainda assim, há muito o que considerar. Impor a todas as universidades brasileiras a aderência ao Enem é um insulto à diversidade nacional, pois parte da premissa de que o Brasil todo possui um sistema de ensino padronizado. Em verdade, esta ideia não poderia ser mais presunçosa. Cada estado tem um enfoque educacional específico. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por exemplo, expressam através da escola o seu amor pelos processos históricos da região; o Ceará, por sua vez, demonstra cada vez mais uma preocupação maior com a matemática, investindo muito nesta área do conhecimento; e assim por diante.
    Os motivos que levam o MEC a continuar insistindo no Enem não são muito claros. Se, na teoria, o intuito é apenas criar uma avaliação uniforme para todo o território nacional, na prática sabemos que existem segundas intenções. Além da questão financeira, que é um pouco óbvia, me atrevo a cogitar a possibilidade de isso tudo não passar de uma tentativa de estagnar a educação e continuar criando, como diz o historiador José Murilo de Carvalho, uma população bestializada — em outras palavras, apolítica e conformada —, que aceita tudo o que o governo as impõe.
Comentário sobre o Enem 2013
    Depois de eu fazer diversas críticas, nada mais justo que enaltecer os pontos surpreendentemente positivos que presenciei no Enem este ano.
    A começar pelo que julgo mais importante, o nível das questões — principalmente as de matemática e de natureza — esteve significativamente mais alto. Ao contrário dos exemplares anteriores, as perguntas deste ano exigiam, em geral, mais raciocínio e um pouco mais de conteúdo. Muitos professores que já declararam algo a respeito concordam comigo quando digo que o exame este ano está mais próximo dos vestibulares tradicionais. Não há maior prova disso do que a própria questão da demonstração de Willian Harvey, copiada da Fuvest de 2007.
    Os textos, embora tão longos quanto antes, apresentam desta vez perguntas mais relevantes e mais conexas com a coletânea em si. Por mais incrível que possa parecer — especialmente quando se trata de Enem —, foram raras as questões que podiam ser resolvidas ignorando-se o enunciado. Em contraposto, isto também acarreta uma maior exaustão e acrescenta barreiras de tempo mais extensas.
    Além disso, foi notável a preocupação dos elaboradores da prova em dar enfoque a assuntos extremamente relevantes e de cunho social, ainda mais que nos anos anteriores, nos quais o repertório parecia ser exclusiva e enjoativamente baseado em sustentabilidade.
    Por outro lado, sentindo na pele o que é estar prestar o Enem "pra valer", me sinto apto a pontuar alguns defeitos muito graves.
    Na prova de linguagens, não só uma mas várias questões continham alternativas que, se fossem friamente analisadas, compreendiam múltiplas respostas. Propositalmente ou não, os elaboradores inseriram afirmações que davam margem à dupla ou tripla interpretação. Os vestibulares mais tradicionais, embora também deixem os candidatos em dúvida entre uma ou outra alternativa, tomam o devido cuidado para não exagerarem na subjetividade de ambas.
    A redação, que acabou por surpreender a todos com seu tema alheio aos diferentes tipos de manifestos recentes, possui pontos positivos e negativos. Se por um lado a proposta abordou um tema que muitas vezes é negligentemente ignorado pelos brasileiros e deve ser discutido, por outro limitou os candidatos ao senso comum — afinal, ninguém em sã consciência argumentaria (de modo convincente) a favor de dirigir embriagado —, assim como nos outros anos.
    Contudo, é no tempo que se encontra o pior defeito do Enem, especialmente no segundo dia. Cinco horas e meia, para uma redação (se consideramos uma redação bem planejada e estruturada) e mais 90 questões. É simplesmente impraticável, para qualquer um sem habilidades sobre-humanas ou sem um vira-tempo, ler, interpretar, analisar e resolver uma prova como esta nesse tempo. Tudo bem que "se está difícil para um, está difícil para todos" e "é preciso testar a resistência dos candidatos", mas fica evidente que os elaboradores não consideram o período de tempo relativamente ínfimo ao fazerem do Enem uma prova repleta de exercícios que exigem intermináveis contas de operação, que, embora simples, certamente demandam tempo e MUITA paciência.

Fragmentos

    Na mesa jaz um exercício não terminado, em forma de cálculos e desenhos geométricos perdidos pela folha de papel. Enquanto a chuva bate ruidosamente contra a janela de vidro, frases melódicas ao som do ukulele e do trompete preenchem o que resta do espaço entre meus pensamentos inquietos. "Let the seasons begin", diz ele. "It rolls right on."

    Algumas eventuais abas abertas, mas nada relevante. Apenas redes sociais, que ficam ali feito figurantes num filme, sem muito o que acrescentar. Apesar do desinteresse, uma curiosidade ínfima dá a ordem para que meus dedos continuem a arrastar a barra de rolagem.

    Tudo me soa medíocre. A cidade interiorana, o século das futilidades e sobretudo as pessoas. Que diabos de raça é esta, que se considera a mais racional, sendo dentre todas a única que mata por puro sadismo? A mais impertinente, tentando atribuir sentido a tudo, como se o universo inteiro obedecesse à lógica pretensiosa do ser humano. A mais crítica, que se acha no direito de julgar quem bem entender. Sim, caí em contradição — pois é exatamente o que estou fazendo neste parágrafo: julgando —, porém, não admitir isto seria hipocrisia, e fazê-lo seria nada mais que reconhecer minha defeituosa essência humana. Portanto, não me resta outra escolha senão reconhecer minha própria mediocridade.
    O futuro, embora chegue segundo por segundo, parece-me mais distante que nunca. E pior: é imprevisível, traiçoeiro. Carrego comigo o medo de decepcionar a mim mesmo e àqueles que amo, de ser incompreendido, e até mesmo o medo do próprio medo. Tenho ciência de que sofrer antecipadamente não é lá muito sensato, porém, ainda assim, a insegurança é inerente à minha condição humana.
    Enquanto os grandes sonhos, incertos, se esboçam a distância, limito-me a expor fragmentos de uma mente desguarnecida, tornando-os acessíveis a qualquer um que tenha cinco minutos e um mínimo de disposição para lê-los. Invariavelmente, sujeito-me às críticas do leitor. Embora as palavras aqui colocadas possam ser consideradas inconclusivas ou até mesmo sem finalidade clara, pouco importa. O título do blog está aí e não é à toa. De qualquer modo, foge ao meu alcance transmitir uma boa impressão, afinal, sempre haverá julgamentos. Importar-me com eles, porém, está fora de questão.

Ponteiros

Nem sempre se ouve o tic tac
Embora ele esteja lá
Literalmente o tempo todo

Sutil, ele se faz audível
Mas somente para os atentos.
Em uma questão de segundos
Seu ritmo calmo se torna inquietante
E perturba o sono dos que ouvem-no

Algo que antes
Era comum, constante
De repente, se torna incômodo

Tic Tac
Os ponteiros estão correndo
Barulhentos, cruciantes
Segundos, minutos, horas, dias, anos
Tudo escapa às mãos
Escorre pelos dedos

Você não pode controlá-lo
Você não pode comprá-lo
Pois ele, o tempo
Não se rende às exigências do Homem
E sim o contrário

Os ponteiros se movimentam
Todo dia, toda hora
Mas os poucos que percebem
Tentam silenciar o relógio que tanto os preocupa
Para que possam voltar a dormir, tranquilos

E assim o tic tac da vida continua
Silencioso num canto, irrefreável

A vida por detrás da simplicidade

    Eu poderia começar o texto com palavras complicadas e impessoais, evitando usar o "eu" e analisando criticamente algum tema polêmico. É claro que poderia. Poderia também evitar repetições de palavras, pois afinal de contas, um texto que se preze não tem qualquer semelhança com a linguagem cotidiana.

    Para quê usar palavras objetivas e claras, quando existem as complexas e vagas para preencher longos períodos de tempo? É sempre bom incluir expressões como "sociologicamente falando", por mais que elas não acrescentem muita coisa ao sentido da sentença. E se for uma aula na qual seja preciso mascarar a falta de conteúdo, uma boa dose de gerundismo é sempre bem-vinda. Até porque, "Iremos estar desenvolvendo os aspectos decorrentes do assunto proposto pelo material didático" soa muito melhor que "Vamos seguir a apostila".
    Onde estou querendo chegar com toda essa ironia? Simples. As pessoas insistem em coisas desnecessárias. Não é uma crítica, pois muitas vezes também me incluo neste grupo; eu diria que é mais uma reflexão. Por que precisa ser tudo tão complicado? Não vou nem entrar no mérito do sistema educacional nesse texto, porém, é válida a linha de questionamento sobre a real necessidade de aprender, em média, doze matérias no ensino médio para se tornar alguém de prestígio.
    E no meio de tantas regras e burocracias massantes, fica difícil reconhecer a importância das coisas simples. Acordar por conta própria, sem compromissos; sentir o cheiro de café às manhãs; fazer e receber gentilezas gratuitas; admirar a infinidade do céu num dia ensolarado; jogar conversa fora por horas e horas com alguém querido. Pode parecer fútil, mas tudo isso faz parte de um lado lindo da vida que se esconde justamente onde menos se espera. Compare este descomplicado texto em prosa, por exemplo, a uma poesia carregada de vocábulos e metáforas que ninguém entende. Apesar da preferência acadêmica pela última opção, é inegável que estrutura simples da primeira a torna muito mais humana, por assim dizer.
    Insisto nessa questão porque muito da banalização que vemos hoje em dia é decorrente disso. A maioria dos relacionamentos amorosos são baseados apenas em pegação, demonstração de afeto através de presentes caros e meras formalidades, esquecendo-se das pequenas coisas que compõem verdadeiros laços, como perguntar — e realmente se importar — sobre como o dia da pessoa foi, ou trocar olhares tão profundos que chegam a ser mais significativos que palavras.
    Certa vez li em algum lugar que "mais vale meio quilo de comida saboreada e mastigada do que dois de comida engolida". A vida é certamente muito curta para ser desperdiçada, mas é ainda mais curta para ser vivida de forma mecânica, indiferente aos pequenos detalhes.

Pseudopolítica e plutocracia

O texto a seguir foi redigido com base na proposta de redação da FUVEST 2012: Participação política: indispensável ou superada? Confira a proposta completa e a coletânea disponibilizada clicando aqui.

    Diante da vigente estagnação política na qual se encontra a esmagadora parte da população brasileira, tem se discutido muito a participação — ou, no caso, a ausência da mesma — do povo nos processos políticos em geral. Não no quesito “votar”, pois o voto compulsório é previsto pelo Código Eleitoral do Brasil já há muitos anos, mas sim no que diz respeito ao real envolvimento político, implicitamente incluso nos direitos e deveres do cidadão.
    Isso porque, quando o assunto é política, nota-se um desinteresse devastador por parte das pessoas, tanto dos jovens quanto dos adultos. Muitos chegam até a orgulhosamente se autodenominarem “apolíticos”, como se estivessem se desresponsabilizando por todos os desastres sociais e econômicos provocados pela eleição de governantes ineficientes. Ora, estes não poderiam estar mais enganados! Uma vez que a pessoa se abstém dos direitos políticos, ela automaticamente se torna a maior responsável por deixar impune os que fazem uso do Poder Executivo para bem próprio. Esta escolha é tão sensata quanto votar cegamente, sem pesquisar os antecedentes do eleito ou do partido em questão.

    Seria insensato tentar encontrar o porquê de tal mentalidade popular, já que não existe uma causa exclusiva. A situação política brasileira atual é consequência de vários fatores desencadeados principalmente pelo individualismo. Isso está diretamente relacionado com a negação do “pensar coletivo”, produto do capitalismo, sistema profundamente enraizado em nossa sociedade. Portanto, a essência da política — priorizar o coletivo, mesmo que seja em detrimento do individual — acaba sendo invertida e o que sobra são só os processos burocráticos que mascaram o sistema corrompido.
    O único possível resultado disto tudo não é nada diferente do que encontramos nos dias de hoje: muitas eleições “compradas” através do coronelismo (conhecido também como "voto de cabresto", atrelado à manipulação de massa), constantes desvios de verba pública e uma população impotente e conformada. É claro que, sempre que podem, as pessoas reclamam e expõem seus pensamentos negativos e generalizados sobre a política nacional; entretanto, não movem um dedo para fazer algo a respeito. E ainda têm a pachorra de criticar os que vão às ruas para protestar, alegando que “não adianta”.
    Por fim, neste cenário onde as pessoas aceitam as condições impostas pelo descaso para com a população, a política deixa efetivamente de ser política e abre espaço para uma plutocracia informal, sistema no qual dominam os que possuem maior poder aquisitivo, em substituição à democracia, que não sai do papel. Portanto, se a questão for analisada sob um ângulo prático e desilusório, é possível inferir que a política não deixou de existir, até porque isto não seria possível; ela apenas adquiriu uma forma completamente distinta da ideal. Contudo, não resta dúvidas que esta alteração provocará consequências cada vez piores à sociedade, e a situação só será reversível por meio de drásticas reformas no sistema político.

Do gosto ao fanatismo musical

    Se existe uma forma de expressão mais antiga que a própria linguagem humana, é muito provável que esta seja a música. Desde os tempos mais remotos, a música fez parte da conjuntura que é a complexa cultura humana. Com o passar dos séculos, o Homem desenvolveu e aperfeiçoou técnicas visando criar e apreciar todas as formas musicais que ele achou possível.
    Com certeza poderia ser considerado cego quem é incapaz de reconhecer a importância da música ao decorrer da evolução humana em absolutamente todos os tipos de sociedade. Obviamente, a diversificação é brutal: dificilmente você encontrará, na história da humanidade, dois tipos de cultura que sejam exatamente idênticos. Mesmo porque, isso seria impossível, considerando o fato de que o desenvolvimento das sociedades segue diferentes matrizes e padrões.
    No entanto, por mais que a presença da música em nossas raízes históricas seja evidente, é bem provável que alguns não se deem conta da relevância desta arte nos dias contemporâneos. É claro que muitos têm noção do papel que ela desempenha no século XXI, principalmente quando se refere aos jovens, que costumam ouvi-la diariamente, seja no computador, no celular (com os famosos "foninhos") ou em concertos ao vivo. Entretanto, como jovem, me sinto na obrigação de sair desta "bolha" e analisar outros grupos da sociedade.
    Quando questionados, é imensa a quantidade de adultos que dizem não se importar com música. Talvez isso se dê ao fato de que a música se encontra, em sua grande parte, veiculada — e, na maioria das vezes, implícita — a outros recursos de entretenimento. Novelas, seriados, filmes e desenhos animados. Evidenciando a presença da música como complemento em tudo isso, sua importância se torna, de fato, inegável.
    Não é difícil imaginar o porquê disso. A música desperta sentimentos, trás lembranças, nos comove, nos alegra, nos deprime. Ela tem o poder de tornar momentos inesquecíveis, de ilustrar cenas históricas épicas e até mesmo de contar estórias (Tchaikovsky que o diga!). As melodias ativam determinadas áreas do cérebro responsáveis pelo raciocínio e concentração. Estimulam a criatividade e, acima de tudo, são uma grande fonte de inspiração.
    Mais do que isso, a música também nos representa. A variedade de estilos cria, direta e indiretamente, grupos de pessoas com similaridades ideológicas e/ou sociais, muitas vezes quebrando fronteiras de idade, religião e nacionalidade. Até o estilo punk, da década de 70 — cujo único objetivo inicial era ser, como o nome sugere, um mero estilo — acabou por se tornar, anos mais tarde, todo um movimento político, ético e social. Isso só comprova ainda mais o papel da música na elaboração de uma identidade coletiva, tornando cada um de nós diferente do resto da população e, ao mesmo tempo, semelhante a determinados grupos.
    Talvez este seja um dos aspectos mais notáveis da música: a capacidade de criar uma caracterização pessoal perante à sociedade, consolidando melhor a personalidade de cada indivíduo. Porém, é de extrema importância frisar que há limites para tudo. O estímulo à criação de uma identidade musical é saudável somente até certo ponto.
    Infelizmente, são bastante comuns casos nos quais as pessoas criam um vínculo tão forte com determinadas bandas ou cantores que acabam se tornando um tanto obsessivas. Não me entenda mal; não estou me referindo necessariamente aos fanboys e fangirls que existem por aí. Afinal, todos nós temos uma banda ou até mesmo um estilo musical do qual somos fãs. Contudo, a partir do momento em que isso se torna uma idolatria, a questão começa a ficar perigosa, principalmente quando se trata de uma idolatria cega.
    O fanatismo pode ser percebido por todos, exceto pela pessoa em questão. Tudo começa com um sutil presunção de superioridade em relação aos outros estilos e pessoas. Isso vai se desenvolvendo, até que, em pouco tempo, a pessoa se encontra envolvida em discussões de cunho "minha banda é melhor que a sua". Ofende-se muito facilmente, pois acredita que o ídolo é absolutamente incriticável. Aparentemente, qualquer opinião adversa é inaceitável e automaticamente desqualificada.
    Chega a ser irônico, pois nem mesmo os próprios cantores levam a música tão a sério quanto determinados fãs. De repente, a música perde sua essência como forma de expressão e divertimento para adquirir, implicitamente, a importância de irrefutável "credencial ideológico". É decerto controverso, pois nos dias de hoje reafirmar seu gosto musical de modo constante e controlador parece ter se tornado mais importante que a própria apreciação da música. Uma prova disso são as pessoas que compram camisetas e fazem a maior propaganda de determinadas bandas, mesmo não ouvindo-as. E que atire a primeira pedra quem não conhecer alguém assim.
    É plausível, de certo modo, o argumento de que alguns estilos musicais são melhores que outros, se considerados vários elementos (como a complexidade de letra e melodia, a influência de fatores históricos e principalmente a duração da popularidade), mas é necessário entender que a questão "melhor" ou "pior" é extremamente relativa, ainda mais quando a música atende a diversas finalidades. Por ela é possível transmitir ideias, expressar sentimentos, filosofar sobre as coisas da vida, mas também é possível simplesmente apenas entreter as pessoas. Não se pode limitar a música do mesmo modo que alguns parnasianistas como Olavo Bilac exaustivamente tentavam fazer com a poesia no século XX.

    Faço aqui uma comparação para ilustrar o que estou querendo dizer. A imensa maioria de músicas contemporâneas são compostas por melodias simples, repetitivas e computadorizadas, e acabam caindo no esquecimento em menos de três meses. Em contraposto, muitas músicas clássicas permanecem conhecidas e admiradas há vários séculos, produto de um grande empenho e talento por parte de compositores imponentes da época, que até hoje são consagrados. No entanto, um tipo de música não desqualifica ou invalida o outro, pois cada uma atende a um público com objetivos diferentes. Numa festa, as pessoas não estão minimamente interessadas em saber o valor histórico ou a complexidade do composição; elas querem apenas se divertir. Portanto, é preciso compreender que nenhuma música deixa de ser música por conta de suas características.
    Nem todos os estilos musicais agradam a todos, mas é justamente essa diversidade de gostos que confere a esta arte a beleza diferencial. Quem se recusa a reconhecer a importância de uma música cujo estilo não corresponde ao seu gosto pode ser equiparado à pitoresca figura de um cavalo usando um cabresto.

Reflexos sociais do capitalismo

O texto a seguir foi redigido com base na proposta de redação da FUVEST 2011: O altruísmo e o pensamento a longo prazo ainda têm lugar no mundo contemporâneo? Confira a proposta completa e a coletânea disponibilizada clicando aqui.

    Vivemos em um período paradoxal. Os indivíduos da sociedade constituem esta de forma solitária e individualista, o que é muito estranho, uma vez que toda a estrutura social — desde as menores até as maiores dimensões — deve se organizar coletivamente.
    As pessoas estão ficando egoístas e, ainda mais, se esquecendo de algo essencial à humanidade: a empatia. É ela a responsável pela compreensão e consideração mútua, por “se colocar no lugar do outro”. Este sentimento constitui a base de absolutamente todas as relações humanas: a de pai e filho, de aluno e professor, de motorista e pedestre e etc. E, tendo em vista os dias atuais, chega a ser desnecessário dizer que é cada vez mais difícil encontrar alguém disposto a sair da zona de conforto e ver o mundo com os olhos do próximo.
    Alguns, tal como o filósofo inglês Thomas Hobbes, que acreditam na determinante predisposição do ser humano a “ser mal”, certamente atribuirão a culpa a esta suposta natureza do homem. No entanto, quando se refere a assuntos tão graves e presentes como este, seria mais sensato buscar causas menos filosóficas e mais concretas e consenquenciais.
    A falta de empatia deriva da constante e excessiva pretensão do ser humano. Em outras palavras, deriva basicamente da ideia de “o que eu vou ganhar com isso?”, que provém das raízes mais profundas de uma sociedade: o sistema socieconômico. No caso, o capitalismo.
A falta de empatia deriva da constante e excessiva pretensão do ser humano. "O que eu vou ganhar com isso?"
    Os próprios mecanismo deste sistema trabalham de modo a criar nas pessoas um espírito individualista, não necessariamente por ganância, mas muitas vezes pela sobrevivência em si. Ao longo dos séculos, o capitalismo adquiriu tanta influência — principalmente através do uso da mídia como instrumento para modelar a mentalidade da massa populacional — que acabou sendo profundamente incorporado por nossa cultura.
    Esta influência não explica só a falta de empatia, mas também outros aspectos vigentes nos dias de hoje, como a estranheza das pessoas em relação às ações despretensiosas. Não há maior prova disso do que o próprio questionamento feito a Roberto Burle Marx, explicitado no trecho da revista Paisagem Escrita, quanto à suposta falta de sentido em realizar um ato que não o beneficiasse (no caso, referente à semente da Corypha umbraculifera, uma árvore que só dá flores cinquenta anos após o plantio).
    E é interessante pensar que a questão não pára por aí. Evidenciando ainda mais a participação do capitalismo na caracterização social, se destaca o imediatismo: as pessoas costumam evitar resultados a longo prazo, pois o próprio sistema faz com que elas pensem que “quanto mais rápido o lucro vem, melhor”. Isso decerto compromete a progressão saudável da humanidade, pois a essência desta é a determinação compartilhada e solidária, visando um bem comum, assim como é mencionado pelo escritor Z. Bauman, em seu livro Vidas Desperdiçadas.
    Tendo compreendido que a falta de altruísmo e pensamento a longo prazo são reflexos profundos de um sistema culturalmente enraizado, é preciso nos desapegar de esperanças ilusórias e encarar o problema de frente, tornando possível, assim, uma análise nem otimista, nem pessimista, mas realista.
    Está bastante claro que os rumos de alguns valores sociais (que englobam a empatia, a solidariedade, entre outros) estão à mercê do capitalismo, pois este rege todo um conjunto de questões, como a ecológica, a habitacional e a segregacionista. Assim sendo, é possível inferir que só poderá haver uma restauração significativa no espírito coletivo da sociedade a partir do momento em que os indivíduos que a compõem atribuírem uma valorização maior a outros fatores, que não a ascensão econômica. Enquanto isso não ocorrer, podemos esperar grandes catástrofes desencadeadas pelo consumismo irrefreável.

RESENHA: Avatar: A Lenda de Aang/Korra

     Antes de começar a resenha, considero necessário ressaltar algumas coisas. Em primeiro lugar, é extremamente importante que o leitor saiba diferenciar a série animada Avatar: A Lenda de Aang da fracassada tentativa de criar um filme (intitulado como apenas O Último Mestre do Ar) baseado na história. Esta resenha diz respeito ao primeiro item, o desenho de três temporadas (de 2005 a 2008) e à sua continuação, Avatar: A Lenda de Korra (lançada em 2010). Caso você tenha assistido ao filme, não o considere como base para este texto.
     Outra coisa essencial: minha intenção definitivamente não é tentar abrir os olhos de quem se recusa a enxergar. Independente de você já conhecer a série ou não, é importante abrir a mente e reconhecer que o conteúdo de uma história não é prejudicado pela plataforma em que ela se encontra. Podemos pegar como exemplo a saga Star Wars, que é inteira composta por filmes e por HQ: mesmo sem o uso de livros para descrever a história, ela continua sendo uma das obras mais famigeradas da humanidade. Portanto, caso você já esteja predisposto a desmerecer a série Avatar por ela ser um "mero desenho" (note as aspas!), pare de ler aqui.

A Lenda de Aang
    Avatar: A Lenda de Aang (abreviado como A:TLA, do inglês Avatar: The Legend of Aang) estreou na Nickelodeon em fevereiro de 2005. Com três temporadas (cada uma com uma média de 20 episódios de 20 minutos cada um), a saga foi produzida até 2008, conquistando, nesses três anos, uma audiência além das expectativas e muitos prêmios e nomeações. Das 15 indicações aos mais diversos prêmios televisivos, Avatar: A Lenda de Aang venceu 10.[1]

Tribo da Água do Norte, Reino da Terra, Nação do Fogo e Templo dos Nômades do Ar do Leste do Norte

     A saga conta a história de um mundo onde a humanidade é dividida entre as pessoas das Tribos da Água, do Reino da Terra, da Nação do Fogo e dos Templos dos Nômades do Ar. Cada grupo conta com suas próprias características culturais, sociais e econômicas. Dentro de cada nação, existem pessoas capazes de controlar um dos quatro elementos da natureza (respectivamente: água, terra, fogo e ar). Essa manipulação é intitulada no desenho como dominação ou dobra, e é de extrema importância para a harmonia da civilização. Além disso, cada uma dessas dominações é baseada em um estilo próprio de artes marciais (T'ai chi ch'uan, Hung Ga, Northern Shaolin e Baguazhang).[2]
     A Tribo da Água pode ser dividida em Tribo do Norte e Tribo do Sul, uma em cada polo do planeta. Talvez por terem as mesmas diretrizes de origem, existem muitas semelhanças entre as duas tribos (tanto no aspecto político quanto econômico); porém, como são distantes uma da outra, existem também diversas diferenças entre suas tradições e seus metodologias de dobra de água. E, embora essas sejam as principais divisões dos dominadores de água, há algumas civilizações pequenas e pouco conhecidas de dominadores do elemento, como minúsculas sociedades presentes em alguns pântanos.
     Já o Reino da Terra, como o próprio nome ("Reino" da Terra) sugere, compreende um imenso território. Provavelmente por ser um lugar mais rústico, toda a sua infra-estrutura segue um padrão muito semelhante ao feudal. Sua política é composta por várias cidades (que desempenham o papel de sub-reinos), umas maiores que outras. Inclusive, a questão social e principalmente econômica entra aí, pois existem fortes discrepâncias entre esses sub-reinos. Ba-Sing-Se, por exemplo, seria como a grande São Paulo: população muito alta e monstruosos índices de desigualdade social; só que tudo isso sob o aspecto medieval do Reino da Terra.
     E é claro, não podemos nos esquecer da poderosa Nação do Fogo. Aproveitando a comparação de Ba-Sing-Se com São Paulo, eu diria que a Nação do Fogo seria equivalente aos Estados Unidos dos dias de hoje. Das quatro nações, é a melhor em quesitos econômicos. Exala prepotência e muitas vezes sobrepõe o direito das outras nações em razão de seus interesses próprios. Em alguns aspectos, porém, a Nação do Fogo se assemelha muito à Inglaterra há alguns anos atrás. Não só seu modelo político é imperial — com a família real e o trono do Senhor do Fogo (que é passado de pai para filho) —, mas também sua natureza tecnológica: a Nação do Fogo é o berço da industrialização no desenho e, além disso, sempre está à frente das outras nações em questões bélicas.
     E por último, os Nômades do Ar, que são em divididos em quatro templos: o Templo do Norte, o do Sul, o do Leste e o do Oeste. Assim como as diferentes Tribos da Água, cada templo possui suas particularidades, apesar de partilharem muitas crenças e tradições. O sistema político é pouco desenvolvido, se comparado com o das outras nações. A civilização é praticamente formada por monges, sendo dois templos formados exclusivamente por pessoas do sexo masculino (Norte e Sul) e outros dois templos por pessoas do sexo feminino (Leste e Oeste). Os nômades do ar são muito pacíficos e não possuem organização militar, ao contrário das outras nações. Para se defenderem de possíveis ataques, os quatro templos se localizam em lugares extremamente difíceis de serem alcançados sem a dobra de ar (três dos templos ficam em montanhas muito altas e um fica "grudado de ponta-cabeça" em um despenhadeiro).
    Infelizmente, isso é quase tudo que sabemos sobre os nômades do ar. O motivo? É aí que vem a história.
Água. Terra. Fogo. Ar. Há muito tempo, as nações viviam em paz e harmonia. E aí, tudo isso mudou, quando a Nação do Fogo atacou. Só o Avatar domina os quatro elementos e pode impedi-los. Mas quando o mundo mais precisa dele, ele desaparece. Cem anos se passaram, e meu irmão e eu descobrimos o novo Avatar, um garoto dominador de ar. E embora sua habilidade com o ar seja ótima, ele tem muito o que aprender antes que possa dizer "Eu sou Aang". Mas eu acredito que o Aang possa salvar o mundo.

(Narração da personagem Katara na abertura de cada episódio)
     Logo no primeiro episódio, ocorre algo que desencadeia toda uma série de acontecimentos. Dois irmãos da Tribo da Água (do Sul), um menino e uma menina, estão andando pelo mar parcialmente congelado até que se deparam com um misterioso iceberg. Ao tocar no objeto, Katara, a futura co-protagonista, acaba acidentalmente descongelando Aang, um dobrador de ar de doze anos de idade. Com o decorrer do episódio, ele descobre que estivera preso no bloco de gelo por cem anos, e que, durante esse tempo, a Nação do Fogo atacou e criou uma guerra visando dominar as outras nações.
    E não para por aí. Caso você, leitor, não saiba, o Avatar (do dicionário "uma entidade sagrada que desce à Terra materializado em um humano") é o único capaz de dominar os quatro elementos, e é ele o responsável por trazer equilíbrio ao mundo. Funciona assim: quando o Avatar morre, seu espírito reencarna em alguém da próxima nação da lista (a ordem é terra, fogo, ar e água, elementos que correspondem respectivamente à primavera, ao verão, ao outono e ao inverno). Esse ciclo de reencarnação só é quebrado se ele for morto no estado Avatar — mecanismo espiritual de defesa que só ocorre em situações críticas no qual o Avatar recebe, temporariamente, a sabedoria e o poder de todas as suas vidas passadas —, pois, por estar em seu ponto mais poderoso, está também em seu ponto mais vulnerável.
     Uma vez que o Avatar é o único capaz de dominar os quatro elementos, seu dever é viajar pelo mundo e assim encontrar um mestre de cada elemento para aprender e aperfeiçoar suas habilidades. Ao longo das eras, as diversas reencarnações do Avatar mantêm a harmonia no mundo.
     Onde o menino de doze anos entra nessa história? Bom, como a própria narração de abertura do desenho explica, Aang é o novo Avatar. Infelizmente, ele estivera preso num iceberg, e agora, cem anos depois de muitas mortes, o garoto precisa cumprir sua missão como Avatar e aprender os outros três elementos (fora seu elemento nativo, o ar) e impedir que a Nação do Fogo continue cometendo as atrocidades realizadas no último século.
     No entanto, as coisas ficam ainda mais complicadas com o decorrer dos episódios. Você vai descobrindo que, na realidade, assim que o Avatar Roku — antecessor de Aang — morreu, a Nação do Fogo, sabendo que pela linhagem o próximo Avatar nasceria nos templos dos Nômades do Ar, organizou um ataque surpresa (fazendo o uso de suas máquinas possantes para chegar até as difíceis localizações geográficas) e exterminou todos os dobradores de ar do planeta. O problema, porém, foi que Aang não estava presente durante o ataque. Devido a diversos problemas que o garoto sofria pela enorme responsabilidade (de ser Avatar) sobre seus ombros, fugiu do Templo do Ar do Sul. Durante a fuga, houve uma tempestade muito forte e ele afundou no mar. Prestes a se afogar, o estado Avatar foi ativado e ele inconscientemente criou uma "bolha de gelo" para sobreviver.
     Contudo, por mais que a Nação do Fogo não tenha sido impedida pelo Avatar durante esses cem anos, ela suspeita que não tenha o matado, uma vez que não encontrou qualquer dominador de ar com habilidades fora do normal. Portanto, qualquer sinal de dobra de ar é suficiente para revelar Aang. E dominar o ar não é só perigoso perto de dobradores de fogo, mas também das outras pessoas no geral, pois muitas delas nutrem uma certa mágoa por Aang ter supostamente abandonado a humanidade quando mais precisavam dele. Os riscos só pioram quando Zuko, filho do Senhor do Fogo, parte em busca de capturar o Avatar. Mas vou chegar lá. Antes, preciso falar um pouco das personagens principais.

Fan-art de Aang e Momo, seu lêmure voador

     Evidentemente, Aang é o protagonista. Talvez por ter sido criado entre os monges, é o personagem mais inocente da série. É sempre muito gentil, e às vezes isso se torna seu ponto fraco na hora de enfrentar o inimigo. Na verdade, é tão bondoso que algumas pessoas chegam a criticar a solidificação da personalidade de Aang. Mas é importante lembrar que o menino só tem doze anos (tecnicamente falando), e que o lugar em que ele cresceu fez com que adquirisse um temperamento bastante pacífico.
     Entretanto, um grande encargo lhe foi atribuído desde cedo: já quando criança, ele foi identificado como o novo Avatar e isso o privou de ter uma infância comum. Era excluído das brincadeiras dos amigos por ser o Avatar e representar uma vantagem injusta ao time do qual ele participasse. Mesmo assim, Mestre Gyatso (seu mentor e guardião) ia contra algumas ordens do Conselho de Monges, pois acreditava que Aang também merecia ter uma infância normal. Sendo assim, junto aos treinamentos de dominação do ar, o monge proporcionava ao jovem Avatar vários jogos e brincadeiras, tornando-se assim uma certa figura paterna. O problema foi quando Aang ouviu, escondido, os outros monges decidindo separá-lo de Gyatso, enviando-no para o terminar o treinamento de dobra de ar no Templo dos Nômades do Ar do Leste. Foi aí que ele, confuso e revoltado, e decidiu fugir.

Fan-art de Katara e seu irmão, Sokka

     A menina que encontrou Aang no iceberg se chama Katara, e seu irmão, Sokka. Sendo a última dobradora de água da praticamente arruinada Tribo da Água do Sul, Katara também carrega grandes responsabilidades. Ela e seu irmão decidem, com dificuldade, deixar a tribo e acompanhar Aang, na esperança de poder ajudar o garoto a salvar o mundo. A princípio, essa decisão pode parecer precipitada, mas a história por si própria vai mostrando que ambos, tanto a menina quanto o menino, possuem fortes ligações com a guerra e profundas cicatrizes causadas por esta. Katara perdeu quem mais amava, sua mãe, que se ofereceu à Nação do Fogo em troca de que não levassem a filha; e Sokka perdeu seu pai, que foi batalhar e nunca mais voltou. Cada um mantém uma grande esperança: ela, de ir até a poderosa Tribo da Água do Norte e aprender dominação da água com verdadeiros mestres e de descobrir se sua mãe está viva; e Sokka, de encontrar seu pai.
     Katara possui um gênio muito forte: é sempre quem põe ordem no grupo com seu jeito mandão. Por outro lado, é extremamente carinhosa, e possui um ar particularmente maternal. Em um determinado episódio, ela expõe muito do seu lado psicológico e revela que sua personalidade responsável e prestativa foi construída devido ao fato de ter crescido praticamente sem mãe, e por isso, ter tido que assumir o comando da família. É interessante analisar seu desenvolvimento ao decorrer da história, pois a frágil menininha acaba tornando-se uma poderosa dominadora de água. Torna-se tão poderosa que aprende, contra sua própria vontade, uma sub-técnica muito perigosa da dobra de água: a dominação de sangue, podendo controlar o corpo humano de qualquer um durante a lua cheia.
     Sokka, embora não demonstre, é um personagem muito complexo. Na maior parte do tempo, não leva nada a sério e faz piada de tudo. Seu sarcasmo muitas vezes rende boas risadas a quem está assistindo. A impressão que ele passa nos primeiros episódios é de ser extremamente superficial e infantil. Para a surpresa do espectador, porém, existem alguns momentos em que ele revela seus conflitos internos. Sempre se sentiu um pouco ofuscado pelo grande poder que a irmã possui, e esse sentimento só piora diante de seu modo desastrado de lidar com tudo.

     Zuko. A história de Zuko é um pouco complicada, mas é indispensável para a série. Logo nos primeiros episódios de A:TLA, o moço com rabo-de-cavalo e uma grande cicatriz no rosto aparece em um navio da Nação do Fogo, repetindo muitas vezes: "Eu vou capturar o Avatar e restaurar minha honra!"
  Acontece que Zuko é, na realidade, Príncipe Zuko, pois é o filho mais velho de Ozai, atual Senhor do Fogo. Sendo assim, ele seria o primeiro numa ordem direta a assumir o trono do pai quando este morresse. Seria, se não fosse pelo fato de o jovem ter sido expulso da Nação do Fogo. Durante uma importante reunião militar que participou quando criança, Zuko questionou o pai na frente dos generais, criticando a estratégia de ataque que usava milhares de soldados da nação como "isca" para um ataque maior. Revoltado pela ousadia do garoto, o Senhor do Fogo desafiou o próprio filho para um Agni Kai, um tipo de duelo tradicional da Nação do Fogo. Porém, mesmo com Zuko implorando desculpas e tentando explicar que não tinha a intenção de envergonhar o pai na frente dos generais, Ozai não teve piedade e lutou com seu próprio filho, marcando-o então com uma cicatriz permanente que cobriu quase metade do rosto esquerdo do menino.
     Como Zuko não teve coragem de lutar com seu próprio pai, foi expulso da Nação do Fogo por covardia, e a única condição pela qual o garoto poderia voltar para a casa seria se capturasse o Avatar. Note bem: por mais que houvesse suspeitas de que o Avatar não tinha morrido no ataque surpresa aos Templos do Ar, a probabilidade era mínima. Portanto, era uma condição praticamente impossível de ser realizada. Mesmo assim, o ex-príncipe continuou a desbravar o mundo, obcecado em capturar o Avatar e assim poder recuperar sua honra.
     Embora Zuko seja um habilidoso dominador de fogo, seu orgulho sempre acaba criando problemas e atrapalhando suas batalhas. Seu passado traumático fez com que ele nutrisse um grande ódio de tudo e de todos, e seu modo violento de encarar o mundo só piora sua situação. No entanto, ao decorrer da história, o dominador de fogo vai revelando inconscientemente que, na verdade, é uma pessoa boa. Já na segunda ou terceira temporada (não me lembro ao certo), quando ele finalmente consegue capturar Aang e é aceito de volta à sua nação, percebe que a busca pelo Avatar era o que dava verdadeiro significado à sua vida, e não a suposta reconquista de sua honra. Percebe também que ser recebido de volta por seu pai não era como sempre imaginara: o Senhor do Fogo ficava cada vez mais frio, mais exigente e não tratava Zuko como um filho, e sim como uma arma política.
     Então um poderoso conflito interno se trava dentro do rapaz, onde ele começa a ver o mundo com os outros olhos. De repente, Zuko começa a enxergar as crueldades da Nação do Fogo contra as pessoas. Isso sem falar nas barbaridades cometidas por ele próprio quando estava obcecado pela captura do Avatar. Um crescente nojo de si mesmo começa a apoderar-se de Zuko, e isso o conduz a um doloroso processo psicológico de arrependimento.
     Após decidir reparar os próprios atos, o rapaz cria um disfarce, "Espírito Azul" (com uma máscara azul e sua extraordinária habilidade com espadas duplas) e liberta Aang, sem revelar sua verdadeira identidade. O disfarce dura algum tempo, mas logo Zuko é descoberto e se vê obrigado a fugir, ficando completamente foragido. Deixa o cabelo crescer, começa dar valor ao seu tio Iroh (já vou chegar lá!), e posteriormente tenta pedir perdão a Aang e seus amigos pelas atrocidades cometidas. A princípio, eles acham que isso é só mais uma estratégia do rapaz para capturar Aang (uma vez que, na visão do grupo, quem libertou o Avatar foi o Espírito Azul, e não Zuko), então é preciso provar que ele realmente está arrependido. Depois de várias tentativas falhas (sempre com seu instinto violento atrapalhando), Zuko finalmente consegue entrar para o "Time Avatar", tornando-se o professor de dobra de Fogo de Aang.

Fan-art de Zuko e seu tio, Iroh

     Comentei ali em cima sobre o Iroh, o tio de Zuko que viaja com ele. Tenho que dizer que, de todas as personagens, Iroh é meu preferido. Nos primeiros episódios, é natural que o espectador não dê credibilidade alguma àquele velhinho gorducho e barbudo que acompanha Zuko. Sempre com sua inesgotável calma e sua curiosa apreciação pelos mais variados tipos de chá, Iroh é uma das principais fontes de humor do desenho. Suas falas e ações são completamente inusitadas e é engraçado ver a revolta de Zuko quando o tio se preocupa mais com as atividades mundanas (como apreciar um chá de ervas ou jogar Pai Sho, um jogo de tabuleiro) do que com a captura do Avatar.
     Por que ele é meu personagem preferido? Muito ao contrário do que sua aparência possa sugerir, Iroh foi um dos mais notórios generais da Nação do Fogo. Ele fora um general tão poderoso que acabou recebendo o nome de "Dragão do Oeste" (segundo a lenda, por ter matado o último dragão do mundo, mas essa é uma outra história que não vem ao caso). Seu poder talvez se deva à linhagem sanguínea: Iroh é, na verdade, irmão mais velho de Ozai, atual Senhor do Fogo. Ele seria, de fato, o primeiro em ordem direta a ocupar o trono do Senhor do Fogo quando seu pai, Azulon, morreu. O motivo de isso não ter acontecido só fica claro na última temporada, quando é mostrado um flashback onde ele está para tomar Ba Sing Se (a maior cidade do Reino da Terra, como já comentei, e que também possui a maior e mais forte proteção externa). Iroh tinha tudo pronto para vencer essa difícil batalha, entretanto, recebeu a notícia de que seu único filho havia morrido. Ao contrário do irmão, Iroh tinha uma profunda ligação com seu filho, então a morte deste fez com que o general abandonasse a guerra (junto com suas tropas) e imediatamente voltasse à Nação do Fogo para descobrir o que aconteceu com o filho. Isso, para Ozai — que, mesmo não sendo Senhor do Fogo na época, já era um dos mais influentes generais — configurou um ato de fraqueza e covardia.
     Com a pressão de todo o conselho militar da Nação do Fogo e de seu próprio pai, Azulon, Iroh se aposentou, e essa sua aposentadoria coincidiu com a expulsão de Zuko. Decidiu, então, acompanhar o sobrinho e tornar-se seu mestre de dobra de fogo. Mas qualquer um que assista aos episódios da série pode perceber que o sentimento que Iroh nutre por Zuko é muito mais do que simplesmente o de um mestre pelo aluno. Para o ex-general, Zuko acaba tornando-se o filho que ele perdeu.
     E quando os sentimentos confusos de Zuko e seu modo violento põem o ex-príncipe em situações muito perigosas — ainda mais quando sua imagem é de "príncipe banido" e ninguém o dá o mínimo respeito —, é salvo por seu tio Iroh, que mesmo aposentado continua com sua inabalável reputação.
Infelizmente, a obsessão de Zuko em capturar o avatar faz com que o rapaz se esqueça de tudo à sua volta e, deste modo, não valorize seu tio. Mas como nunca é tarde demais para arrepender-se, Zuko desiste de tentar agradar seu pai, e percebe que a única pessoa que sempre se importou com ele é Iroh.
     Após Zuko passar pelo processo de "evolução mental" (no qual ele se arrepende das maldades cometidas) e ficar foragido, Iroh, que mesmo depois de tudo continua ao lado do garoto, decide começar uma nova etapa de treinamento.
    Assim como existe uma sub-técnica da dominação de água (a dominação de sangue), também existe a sub-técnica da dominação do fogo: o raio. Tanto a criação quanto manipulação de um raio é extremamente complicada e demanda muito esforço. Só os dominadores de fogo tão poderosos quanto Iroh conseguem dominar esta técnica. Porém, não é preciso só força e poder: é preciso paciência e sabedoria. Por este motivo, Zuko leva muitos dias até conseguir realizar um mínimo redirecionamento de raio.
     O que eu mais gosto no General Iroh é justamente que sua verdadeira identidade (a de um poderoso ex-general) só é revelada por volta da última temporada. Antes disso, ele é apenas o tio preguiçoso de Zuko, que é completamente alheio à captura do Avatar. Seria impossível deduzir que aquele senhor barbudo e robusto é tão poderoso. E mesmo nos momentos em que suas habilidades de Dragão do Oeste são mostradas, Iroh continua sendo um senhor sábio e extremamente bondoso. Não é à toa que ele é um membro da Ordem da Lótus Branca, uma sociedade secreta milenar que desempenha um papel importante nos últimos episódios da série.

Fan-art de Toph

     Se as aparências enganam, Toph que o diga. Uma pequena menina cega, dominadora de terra e filha única do casal mais rico da cidade de Gaolin, localizada no Reino da Terra. Naturalmente, a maioria das pessoas a julgam como frágil e inofensiva, contudo, o cuidado excessivo dos pais ajudou a construir na menina uma personalidade que é exatamente o oposto do que poderia esperar-se. Por ser mimada desde criança (e odiar todo esse mimo), Toph desenvolveu um lado extremamente independente. Sob a vigilância constante de seus pais, ela sentiu a necessidade de criar maneiras de sair escondida de casa, a fim de ter um "momento para si". Em uma dessas fugas, a garota acabou escondendo-se nas cavernas, e lá encontrou toupeiras-texugo, criaturas cegas assim como ela, mas que se guiam através das vibrações da terra. Se identificando com o animal, Toph fez das cavernas um frequente destino para suas fugas, e durante os anos convivendo com as toupeiras-texugo, ela desenvolveu habilidades especiais semelhantes às do animal (porém, como é humana, sua técnica era muito mais desenvolvida), sendo capaz de sentir, com o uso dos pés — a ferramenta mais importante de um dominador de terra —, até mesmo os movimentos mais sutis à sua volta. E como é subestimada pelos adversários (pois é supostamente uma "pobre menina cega"), Toph possui enormes vantagens numa luta. Isso sem falar na sua incrível capacidade de realizar ataques de todos os pontos (contanto que o campo de batalha seja de terra ou de pedra, obviamente) e até predizer alguns movimentos do oponente.
     Quando Toph encontra Aang, Sokka e Katara, existe um pequeno conflito no qual os três descobrem a verdadeira identidade da garota durante um torneio de terra e tentam alertar os pais da garota — que não têm a mínima noção da vida "a parte" que a filha leva quando sai escondida. Assim que os pais descobrem a verdade, eles triplicam a segurança de Toph, com a justificativa de que ela é muito frágil para sair por aí batalhando com bruta-montes, e a menina decide, então, fugir com o trio. Isso acaba tornando-se bastante oportuno, pois além de dar a Toph sua tão famigerada independência, Aang ganha um mestre de dominação de terra.
     A personalidade de Toph certamente dá um outro aspecto ao grupo. Sua maneira de agir e de pensar contrasta muito com a de Katara: enquanto a menina da Tribo da Água é carinhosa, politicamente correta e procura sempre resolver as coisas da melhor maneira possível, Toph é extremamente sarcástica, violenta e nem um pouco feminina. Adora criticar, e não poupa ninguém de suas opiniões francas e desafiadoras. Priva a independência acima de tudo. Não suporta a ideia de as pessoas terem pena dela. Nos primeiros dias com o grupo, por exemplo, a dominadora de terra se desentende com Aang, por confundir uma simples gentileza (armar a tenda da barraca) com um gesto de piedade.
     No entanto, em alguns episódios, a humanidade de Toph é ressaltada, e é justamente aí que podemos perceber que ela não é tão "durona" quanto parece. Quando o quarteto estava hospedado na grande Ba Sing Se, por exemplo, Toph revelou a Katara suas inseguranças quanto à própria aparência (por ser cega, não sabia se era bonita ou não). Isso sem falar em alguns raríssimos momentos onde ela, sem querer, demonstra que tem sentimentos por Sokka.
     Por mais que Toph possa parecer, às vezes, um personagem secundário, ela é de suma importância; tanto para o desfecho da guerra contra a Nação do Fogo quanto para gerações futuras. Na segunda temporada, os caçadores de recompensa contratados pelos pais da menina conseguem capturá-la, prendendo-a assim numa estrutura de metal. Carregada de ódio e desesperada para libertar-se, Toph conclui que metal é apenas uma forma purificada de terra. Com muita concentração e esforço, acaba conseguindo dominar o metal que a prende e livrar-se dos sequestradores. É a primeira pessoa da história, portanto, a "inventar" uma sub-técnica da dominação de terra: a dominação de metal.

     Existem muitas outras personagens que também desempenham papéis importantes na história: Appa, o bisão voador (criatura nativa dos Tempos do Ar) que desde filhote é o guia-animal de Aang; Momo, um lêmure voador que o Avatar encontra nos destroços Templo do Ar do Sul; Azula, filha prodígio do Senhor do Fogo Ozai (e consequentemente irmã de Zuko) e uma das principais vilãs da série; Mai e Ty Lee, as duas "capangas" de Azula; Bumi, o rei louco de Omashu, segunda maior cidade do Reino da Terra; os membros do Dai Li, organização secreta formada pela elite dos dominadores de terra para manter a segurança interna de Ba Sing Se; e Long Feng, secretário do rei de Ba Sing Se e líder do Dai Li, responsável por controlar o reino pelas costas do rei.
     O fato é que eu poderia continuar listando e explicando as muitas personalidades que constituem a saga, mas isso seria desgastante tanto para mim quanto para o leitor, então me contento com a explicação das personagens principais.

     Creio ser importante dizer, também, que o desenho possui uma forte influência oriental. A trilha sonora (que é muito bem trabalhada, por sinal), os cenários, as comidas e até os costumes e tradições foram construídos sob um alicerce tipicamente asiático. É essencial ter isso em mente, pois a saga conta com a presença de vários fatores espirituais (o próprio Avatar, por exemplo), e não podemos confundir as ideias espirituais do kardecismo (vertente cristã) com as orientais.

     Mas nem tudo é só ação. Em Avatar: a Lenda de Aang, existe muito humor. Os provérbios populares citados inoportunamente por tio Iroh ou a machista tentativa de Sokka tentar parecer mais forte do que as guerreiras Kyoshi, por exemplo, rendem boas risadas a qualquer um que não esteja de mal com a vida.
     O desenho também é repleto de conflitos amorosos, como os de Sokka (por Yue, princesa da Tribo da Água do Norte e também por Suki, guerreira Kyoshi) ou o de Katara por Jet (personagem secundário que aparece somente em alguns episódios). Isso sem falar na principal incompatibilidade amorosa: a de Aang por Katara. Começa com uma simples "quedinha" e vai ficando cada vez maior, feito bola de neve. O menino tem que lidar, então, com o encargo da guerra e com seus próprios conflitos internos, pois além de Katara ser sua melhor amiga, ele é muito tímido para revelar sua paixão pela garota.

     No entanto, reconheço que às vezes é preciso sair da nossa "zona de conforto" e apontar, além dos pontos fortes da série, os fracos também. Diante da complexidade das diferentes sociedades retratadas em Avatar, é de esperar-se que haja diferentes idiomas, no mínimo um para cada nação. Contudo, creio que seria bastante difícil trabalhar essa questão em um desenho animado, então é compreensível que os produtores tenham decidido não fazê-lo. Ainda assim, é interessante levantar esse ponto de "o que poderia ser melhorado".

     É necessário dizer que, ao contrário do que acontece com muitas sagas, em A:TLA, a história completa não é entregada de bandeja para o espectador. Tudo o que eu expliquei é revelado pouco a pouco durante o desenrolar da série. Isso significa que, geralmente, quem assiste aos primeiros episódios, muitas vezes perde o interesse de continuar assistindo, simplesmente por pensar que o desenho tem dimensões superficiais e que "é para crianças". É exatamente por isso que estou escrevendo esta resenha: para mostrar a real complexidade da saga. Mas não se preocupe: tomei muito cuidado para não estragar a história para quem ainda não assistiu. Garanto que há muitos outros mistérios, conflitos e personalidades que não estão listados nos parágrafos acima.

     Além disso, a série é fruto de um árduo trabalho de muitas pessoas, tudo muito bem estruturado e pensado. Os produtores e roteiristas se reúnem antes da criação de cada episódio a fim de discutir a mensagem na qual o episódio em questão irá ser baseado. Avatar não é algo sem propósito.

Fan-art de Aang, Katara, Sokka, Soph e Zuko (respectivamente), todos já adultos
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A Lenda de Korra: Livro 1
     A série Avatar: A Lenda de Aang acabou em 2008, mas mesmo dois anos depois, a repercussão era tanta que a Nickelodeon anunciou a continuação da saga, em Avatar: A Lenda de Korra (abreviado como A:LOK, do inglês Avatar: The Legend of Korra), em julho de 2010. Com esforço e dedicação, o canal finalmente lançou o primeiro episódio da série depois de dois anos do anúncio, em abril de 2012 — e ainda assim, após quatro anos da finalização de Avatar: A Lenda de Aang, havia milhões de pessoas ansiosas para assistir à continuação da saga.

Korra (imagens retiradas diretamente do desenho)

     A história se passa 70 anos depois dos eventos de A:TLA, quando o novo Avatar, uma menina da Tribo da Água do Sul (agora já repovoada), é descoberto. Desde criança, Korra é muito talentosa na dominação de água, de terra e de fogo. Suas únicas dificuldades são em relação à dominação de ar e às habilidades espirituais que todo Avatar deveria possuir. Ambas as capacidades requerem um temperamento calmo e obediente, exatamente o oposto da personalidade impaciente de Korra. Na realidade, Korra surpreendeu os espectadores que estavam preparados para um Avatar delicado e feminino: a própria natureza da garota é agressiva e, como a da maioria dos adolescentes, imediatista.
     Após completar seu treinamento de dobra de fogo, a jovem se vê na necessidade de um tutor para a dobra de ar, e o mais qualificado para isso é Tenzin, filho de Aang.

     Com a mesma aparência do pai (careca e com uma flecha na cabeça, características típicas dos dominadores de ar) exceto pela grande barba, Tenzin é o responsável por restaurar a cultura dos monges do ar, repovoando o planeta com os dominadores do elemento (com seus quatro divertidos filhos, Jinora, Ikki, Meelo, e Rohan) e tentando trazer de volta as tradições deixadas por pergaminhos históricos.
     Sua inabalável paciência e sua inesgotável tolerância fazem dele um habilidoso dominador de ar e, ao mesmo tempo, um excelente pai de família.

Tenzin e sua família

     Na companhia de seu leal urso-polar de estimação, Naga, Korra parte em rumo à Cidade República, metrópole e capital da República das Nações Unidas, onde dobradores e não-dobradores do mundo todo vivem teoricamente em harmonia. Digo "teoricamente" pois, quando Korra chega na cidade, ela descobre que esta é infestada de dobradores criminosos que se aproveitam de não-dobradores indefesos. Em poucas horas no lugar, a jovem Avatar combate uma trupe de bandidos, mas acaba fazendo um estardalhaço nas ruas e estabelecimentos e vai presa.
     A força de polícia da Cidade República é uma organização formada pela elite dos dobradores de metal, e chefiada por Lin Bei Fong, filha de Toph Bei Fong (a menina cega que desenvolveu a técnica de dobra de metal em Avatar: A Lenda de Aang).
     Ao ser presa, Korra explica à mal-humorada chefe Bei Fong que é, na verdade, o Avatar, que está na Cidade República em busca de Tenzin, e que só se meteu em confusão pois não suportou ver a gangue criminosa extorquir pessoas indefesas. A amarga dobradora de metal retruca, então, dizendo que só porque Korra é o Avatar, "não tem a liberdade de sair por aí destruindo tudo o que vê pela frente". Por fim, Tenzin é chamado. Ele liberta Korra e se responsabiliza pelos danos materiais que a garota causou. Korra fica aliviada de ter sido livrada das acusações e por ter finalmente se encontrado com seu mentor de dobra de ar, mas sua felicidade não dura muito tempo.

    Como Tenzin é um dos conselheiros do Parlamento da Cidade República, ele anda muito ocupado com alguns problemas graves que vêm surgindo na cidade. Sendo assim, decide adiar o treinamento de Korra. Após muitas tentativas, porém, a menina consegue convencê-lo de que, se Aang estivesse vivo, ele com certeza gostaria que o filho aceitasse a ajuda de Korra para resolver os problemas da Cidade República e, ao mesmo tempo, ajudasse-a com sua dominação de ar.

     Só abrindo um parênteses aqui. Talvez por não haver mais uma guerra entre nações, os conflitos de A:LOK já não são tão rudimentares quanto em A:TLA. Isso causou muita estranheza nos fãs que estavam acostumados com os problemas rústicos (colônias, guerras, refugiados e etc), principalmente no começo. No entanto, considero válido dizer que, mesmo com sua essência alterada, o desenho continua incrível, pelo menos para os fãs que deram uma chance à novidade. Afinal, é importante lembrar que tudo evolui. O tempo não para só porque o "novo" não nos agrada.

Amon e bloqueadores de ki
     O conflito principal em Avatar: A Lenda de Korra se dá por conta de grupos rebeldes anti-dobra (conhecidos como igualistas). Estes grupos realizam diversos protestos contra o abuso que alguns dobradores criminosos realizam sobre não-dobradores. Até aí tudo bem. O problema começa a ganhar dimensões maiores a partir do momento em que alguns participantes extremistas propõem a proibição da dominação de qualquer elemento. A ideia se espalha, então, e em pouco tempo surge uma espécie de revolução.
     A coisa só piora quando Korra descobre que Amon, o mascarado líder dos igualistas, tem o inexplicável poder de retirar as dominações das pessoas. Nisso, desenvolve-se uma guerra civil onde uma grande parte dos não-dobradores recebem treinamento de bloquear o ki (energia vital que possibilita a dobra de elementos) temporariamente. Os conflitos ficam cada vez mais complexos: Tarrlok, o mais influente membro do parlamento da Cidade República, começa uma verdadeira caça aos igualistas, atingindo inclusive os não-dobradores inocentes que não estão envolvidos na revolução.
     Portanto, a garota da Tribo da Água do Sul se depara com a árdua tarefa de conciliar povos dobradores e não-dobradores, cumprindo, assim, o legado deixado por Aang: manter a harmonia no mundo.

Torneio de pró-dobra

     Porém, como em toda história que se preze, o conflito central não é o único núcleo da trama. O enredo de A:LOK também conta com um esporte com regras muito bem definidas denominado pró-dobra. O campo hexagonal (um trapézio para cada time) é dividido em seis zonas delimitadas por linhas de ferro. Cada time possui três jogadores — um dominador de terra, outro de água, outro de fogo. O objetivo é combater os adversários e avançar as zonas. O jogador de água deve usar uma reserva limitada do elemento, que fica sob as linhas de ferro da arena; e para o de terra, existem blocos de pedra espalhados pelo campo (mas também limitados). A arena não fornece ajuda aos dominadores de fogo, pois estes não necessitam de reservas do elemento para criar ataques.
     Ganha a partida o time que mais avançar zonas ou marcar um nocaute (arremessar pelo menos um dos oponentes para fora da arena). Existem também as faltas, que podem ser atribuídas caso haja uso abusivo de violência ou arremesso de jogadores pelos lados do ringue. E a falta é cobrada com um duelo (dentro de uma mini-arena que se eleva no meio do campo) exclusivo entre dois jogadores de mesmo elemento.

     A pró-dobra é muito importante para a série. Além de ajudar Korra com a aprendizagem do elemento ar (aperfeiçoando os movimentos de esquivar-se, necessários para a dobra de ar), graças ao esporte, ela entra no time de pró-dobra Furões do Fogo e ali conhece seus dois melhores amigos, co-protagonistas da história: os irmãos Mako e Bolin.

     Mako é extremamente sério e reservado. Como é um habilidoso dominador de fogo vencedor de inúmeros campeonatos de pró-dobra, é natural que qualquer um o ache um tanto quanto arrogante, principalmente nos primeiros episódios. Contudo, assim como Toph (de A:TLA), Mako usa essa máscara de "durão" para esconder suas fraquezas. Quando criança, presenciou o assassinato de seus próprios pais por um dominador de fogo, e desde então fez tudo o que pôde para sobreviver nas ruas e cuidar de seu irmão caçula, Bolin. Tudo o que restou de seus pais foi o cachecol vermelho com o qual Mako anda o tempo todo.

     Bolin, o dobrador de terra dos Furões do Fogo, embora tão famoso quanto o irmão, é muito diferente deste em inúmeros aspectos. Sua personalidade, por exemplo, é o oposto da de Mako. Na maior parte do tempo, Bolin é bem-humorado, otimista e divertido. Sua maior preocupação é agradar as pessoas, em especial Korra. O moço não vai a lugar nenhum sem Pabu, seu animal de estimação, um furão do fogo (daí o nome do time).

Bolin, Korra e Mako preparando-se para uma partida de pró-dobra

     Além dos conflitos já apresentados, desenvolvem-se também questões recheadas de incompatibilidades amorosas, até mesmo entre as personagens secundárias. Lin Bei Fong, a áspera chefe de polícia, teve um caso com Tenzin há muito tempo atrás, e mesmo ainda possuindo ressentimentos em relação ao dobrador de ar ter a abandonado para casar com Pema, a dominadora de metal deixou isso de lado e arriscou sua própria vida para salvar a mulher de Tenzin e seus filhos.
     Em relação às personagens principais, Bolin nutre uma profunda admiração por Korra, fazendo de tudo para chamar a atenção da garota; ela, por outro lado, tem sentimentos por Mako desde que conheceu o rapaz. Esses problemas ficam ainda mais complicados quando Asami entra na história.

Hiroshi, Asami e Mako

     Filha única do magnata Hiroshi Sato — responsável por revolucionar a Cidade República criando os "satomóveis", engenhosas máquinas muito semelhantes aos primeiros automóveis criados no século XIX —, Asami é uma elegante jovem que conquista o coração de Mako logo à primeira vista. Difere bastante de Korra em diversos pontos: enquanto a jovem Avatar tem um jeito meio "selvagem" (por ter nascido e crescido na Tribo da Água do Sul), Asami é extremamente refinada. Mas não se engane: a milhonária também "põe a mão na massa" quando é preciso. Além de frequentar aulas de defesa pessoal desde criança, ela é de grande ajuda nas aventuras de Korra, Mako e Bolin contra os igualistas.

A Lenda de Korra: Livro 2
    Depois de aproximadamente dois anos em produção, estreou na Nickelodeon no dia 13 de setembro de 2013 o Livro 2: Espíritos de A Lenda de Korra. Desta vez, os criadores Mike e Bryan apostaram todas as suas fichas numa sequência um tanto quanto diferente, ainda que ligada com a história principal.
    Protagonizam agora, junto com Korra, seu tio Unalaq, que é chefe da Tribo da Água do Norte, e seu pai Tonraq, que comanda a Tribo do Sul. Talvez por sua própria natureza ser mais rústica, Tonraq e sua tribo não levam a sério os rituais que acalmam os espíritos ao longo dos milênios. É exatamente daí que surge o conflito inicial: frotas de navios marcantes acabam sendo atacados por espíritos no Sul e Unalaq, profundo conhecedor da misticidade dos espíritos e seus rituais, decide intervir em sua Tribo irmã.
    Diante desta nova missão, são introduzidas várias outras personagens enigmáticas como os gêmeos filhos de Unalaq, Desna e Eska, que cumprem bem o papel de complementar a história para que ela não se torne cansativa. Pode-se citar também Varrick, um magnata muito rico que trabalha no ramo dos navios cargueiros e é de fundamental importância para a decorrência dos fatos, além de ser a fonte de algumas risadas por sua maneira enfadonha de ser.
    Junto disso tudo, o Livro 2 contempla também o passado primitivo da civilização, contando a história de Wan e como ele se tornou o primeiro Avatar de todos os tempos. Essa retratação exigiu um grande envolvimento com o Mundo Espiritual e tornou possível um conhecimento maior por parte dos espectadores desta aventura em determinadas crenças orientais. Em um determinado ponto, inclusive, o desenho elucida a névoa que faz parte da doutrina taoísta, que é algo semelhante ao "inferno" do cristianismo: lá ficam as almas perdidas e enlouquecidas, sendo obrigadas a enfrentarem seus próprios medos para o resto da eternidade.
Raava e Vaatu, respectvivamente Espírito da Luz e Espírito das Trevas
    No entanto, apesar de todos estes pontos interessantes sobre os quais acabei de discorrer, a segunda temporada de A:LOK não seria o tipo de desenho que eu recomendaria a alguém. Os motivos são bastante simples.
    Ao contrário da saga toda, o Livro 2 possui personagens demasiadamente genéricas e pouco humanas. Elas são mecânicas, superficiais, com emoções efêmeras e facilmente dedutíveis, e isso faz com que toda a dinâmica do desenho deixe a desejar. A impressão que o espectador tem é a de que o roteiro foi improvisado, como se a equipe de produção tivesse deixado para última hora todo o trabalho.
    Os conflitos são completamente batidos, coisa que eu não esperava de Bryan e Mike (os produtores), tendo em vista seus trabalhos passados. Por exemplo: a rivalidade principal, entre Tonraq e Unalaq, baseia-se puramente naquela ideia de "irmão que não foi amado o suficiente e agora quer vingança", digno de novela mexicana. Os romances são clichês e tão misteriosamente instáveis que chegam a ser ditados por brigas fúteis e repentinas.
    E como se já não bastasse todos esses pontos negativos, ainda há a presença de machismo no desenho. A personagem Ginger, estrela de cinema junto com Bolin, é a incorporação da típica mulher fútil, vazia e oportunista tanto retratada em muitas outras obras de Hollywood.
    O desenho perdeu completamente sua essência. Isso parece ter sido escancarado desde o primeiro episódio deste Livro, pois muitas personagens foram redesenhadas e até a própria Korra está mais feminina nesta temporada, talvez por não ter atendido aos padrões de feminilidade da mídia. E convenhamos: colocar uma luta de gigantes coloridos num desenho que definitivamente nunca teve esse estilo é chutar o balde. A sensação que eu, particularmente, tive foi a de cair de paraquedas em um desenho completamente diferente. Decepcionante.
A Lenda de Korra: Livro 3
    A apresentação do mistério inicial se dá nos primeiros minutos da terceira temporada, quando Bumi, o irmão de Tenzin que não a princípio não possuía qualquer tipo de dobra, cai de um penhasco e inesperadamente se salva com uma involuntária dobra de ar. O que começa sendo surpreendente — já que, até onde se sabia, Tenzin e seus filhos eram os únicos dobradores de ar do planeta — acaba sendo preocupante, pois outras pessoas que haviam nascido sem quaisquer poderes acabaram descobrindo a dobra de ar da noite para o dia.
    Descobre-se depois que a causa foi a Convergência Harmônica, isto é, a abertura entre o Mundo Espiritual e o Material realizada por Korra no Livro 2. Esta, inclusive, resultou em severos inconvenientes para os humanos, que não estavam acostumados a conviver com os espíritos e tiveram suas cidades ocupadas por eles, ainda que pacificamente na maioria das vezes.
    O modo com que Tenzin, mestre do ar assim como seu pai, lidou a situação foi interessante: a fim de orientar os novos dominadores (que muitas vezes tinham seus poderes fugindo ao controle), decidiu recebê-los em um dos Templos do Ar e, ao mesmo tempo, empenhar-se para restaurar cada vez mais a cultura dos monges que um dia lá viveram. No primeiro episódio, o homem revela seu lado mais profundo e chora em frente aos seus filhos, pois deseja que seu pai estivesse vivo para presenciar esse momento; decerto, significaria muito para Aang ver seu próprio filho reconstruindo a cultura milenar dos monges do ar.
    Durante certo período Korra enfrenta o desafio de conciliar a convivência entre humanos e espíritos e suportar à pressão das pessoas, as quais depositam toda a responsabilidade sobre as costas da garota, justamente por ela ser o novo Avatar. Este conflito talvez possa ter tomado mais tempo do que seria relevante para a trama, mas é importante ver Korra passando pelos mesmos problemas pelos quais Aang passou quando teve todo o encargo para si. Numa cena emocionante ao por do sol, ela pede um conselho a Tenzin e o sábio monge afirma: "A verdadeira sabedoria começa quando aceitamos as coisas como elas são. Você começou uma nova era, Korra, e não há mais como voltar".

    O verdadeiro conflito principal se revela quando um homem de cabelos grisalhos e compridos, trancado numa prisão de máxima segurança pela ordem secreta da Lótus Branca, também adquire a dobra de ar devido à Convergência Harmônica e surpreende os guardas, conseguindo escapar. Seu nome é Zaheer e, com seus outros três comparsas — que estavam trancados em outras prisões de altíssima segurança, até ele resgatá-los — também dominadores de elite, um de cada um dos três elementos restantes, participa de uma outra ordem, denominada Lótus Vermelha.
    Esses quatro criminosos passam a maior parte do Livro 3 tentando capturar Korra, como acontece em qualquer enredo típico da mocinha perseguida pelos vilões. No entanto, para a surpresa dos telespectadores, existe por trás desta perseguição algo muito mais complexo.
    A Lótus Vermelha se desmembrou da Lótus Branca pois esta última, após vencer a Guerra dos Cem Anos [contra a Nação do Fogo, em A:TLA], "perdeu seu verdadeiro propósito, uma vez que seus membros saíram do anonimato e serviram de forma submissa às nações corrompidas", nas próprias palavras de Zaheer, em tradução livre. O recém dobrador de ar se refere às estruturas de poder legitimadas mesmo após a guerra: o Reino da Terra, com sua sede na poderosa cidade de Ba-Sing-Se, continua sendo uma monarquia cuja rainha é tirana e abusa da população; as Tribos da Água permanecem com sua estrutura hierárquica e tradições antigas; e mesmo a Cidade República, criada por Aang, possui muita corrupção, como mostrou o Livro 1.
    A desenvoltura política de A Lenda de Korra demonstra assemelhar-se cada vez mais à que existia em A Lenda de Aang, pois ela consegue ficar ainda mais complexa: Zaheer não só deseja acabar com a condescendência da Lótus Branca em relação aos moldes cristalizados de poder tirânico, como também afirma que a Lótus Vermelha rejeita qualquer tipo de autoridade, governo ou nação. Respalda sua missão em um discurso anarquista muito forte; afirma que "a verdadeira liberdade só pode ser atingida quando os governos opressores forem derrubados", referindo-se, no entanto, a absolutamente todos os governos. Korra contrapõe e não aceita esta ideia, dizendo que isso provocaria caos e desordem; a resposta de Zaheer é que estes elementos fazem parte da harmonia universal.
    Apesar da radicalidade que permeia os ideais dos membros da Lótus Vermelha, é extremamente interessante observar que existe uma grande coesão que diz respeito ao cenário político da série. No episódio 10, o meu favorito de toda a saga A:LOK, Zaheer se recusa a obedecer os agressivos mandamentos da cruel rainha do Reino da Terra e esta ordena que seus guardas do Dai Li aprisionem-no. O vilão (que começava a deixar os espectadores em dúvida se era, de fato, o vilão) e seus amigos acabam com os membros do Dai Li em uma questão de segundos e, sob a ameaça da tirânica ditadora ("Você não ousaria atacar uma rainha!"), Zaheer tira o ar do pulmão dela, envolvendo-o em volta de sua cabeça e dizendo: "Eu não acredito em rainhas", seguido da frase mais épica de todo o desenho:
"Você acha que liberdade é algo que você pode dar ou tirar por mero capricho. Mas para o seu povo, a liberdade é tão essencial quanto o ar: sem ela, não há vida. Há apenas escuridão."



    Ao contrário do Livro 2, que deixou muito a desejar, o Livro 3 surpreendeu os espectadores, pois abandonou o romantismo clichê e previsível para dar espaço a uma complexidade psicológica maior às personagens e para retomar determinados elementos de Avatar: A Lenda de Aang, como a dobra de metal, que foi aperfeiçoada, propagada e homenageada na cidade de Zaofu, feita inteiramente do material, repleta de obras arquitetônicas grandiosas e fundada pela própria filha da Toph, sendo a mãe monumentalizada por desenvolver essa subtécnica da dobra do ar quando jovem.
    A participação de Zuko, já velho, também contou muitos pontos com os fãs da série, demonstrando sua sabedoria ao aconselhar Korra sobre o que Aang teria feito em seu lugar, bem como seu lado sentimental, ao emocionar-se quando descobriu que a jovem Avatar conversou com seu tio Iroh no Mundo Espiritual.

   O único ponto negativo desta temporada foi a falta de verossimilhança em determinados momentos de combate; os protagonistas pareciam insignificantes ao enfrentarem seus oponentes, tanto no que se refere ao Dai Li quanto aos próprios membros da Lótus Vermelha. É compreensível que isso ajude na criação de um conflito maior que consiga prender mais o espectador, porém, esse desequilíbrio de forças entre oponentes revelou uma certa ausência de criatividade por parte dos roteiristas.
    Ainda há muitas outras coisas novas sobre as quais discorrer, como a exclusiva subtécnica da dominação da terra — a dominação de lava —, o reencontro de antigos familiares por parte de algumas personagens, e até mesmo a exploração do psicológico de personagens que tiveram seu lado humano evidenciado retomando passados traumáticos, como é o caso da chefe de polícia Lin Bei Fong.

A Lenda de Korra: Livro 4
    O Livro 4: Balance (em português, algo próximo a "Equilíbrio") é o último da série. Durante os primeiros episódios, a realidade pós-traumática — decorrente do mal físico e psicológico que Zaheer lhe causara no Livro 3 — de Korra revelou seu lado frágil. A garota impaciente e durona de sempre parecia, de repente, despida toda a coragem e determinação. Apesar da ressalva que receio ser necessária a respeito de esta retratação ter tomado tempo demais, tornando assim os primeiros episódios extremamente monótonos e cansativos, é inegável que esse estado de espírito de Korra remeteu a Aang e às vezes que o pequeno menino se viu fadado a carregar o peso do mundo nas costas. Embora sutil, esta relação entre Korra e Aang ajuda a reforçar a ideia de que um é, na verdade, o outro, destacando o ciclo Avatar e, mais, pressiona na tecla de que crises emocionais são naturais e, numa análise mais arriscada, necessárias para o processo de formação da responsabilidade.
     Após ser dominada por inúmeras alucinações advindas de seu estado de perturbação mental e espiritual, Korra é atraída para O Pântano, lugar altamente misterioso e espiritual. Como uma espécie de elucidação ao planeta Dagobah de Star Wars, algo na natureza daquele ambiente chamou Korra, que, em vez de encontrar Yoda, acabou encontrando Toph. A dominadora de terra cega, apesar de ter agora uma idade avançada, parecia ter mudado muito pouco ou quase nada: continuava com sua simplicidade comicamente grotesca que conquistou o coração de tantos fãs em A:TLA. Tanto Toph quanto o próprio pântano, cuja capacidade é fazer cada um enfrentar seus próprios medos (outra semelhança com Dagobah), deram suporte para que Korra superasse a crise e se reconstituisse física e emocionalmente.
     O tchan do Livro 4 claramente se dá com o surgimento de uma nova vilã. Kuvira é uma habilidosa dobradora de metal que recebe poder temporário para criar estabilidade no Reino da Terra, que estava absolutamente caótico após Zaheer assassinar a rainha no Livro 3. No entanto, sua ambição foi tão grande que fez com que ela desse um golpe de Estado e tomasse o poder, autointitulando-se como A Grande Unificadora do agora chamado Império da Terra.
    Novamente, se há algo indiscutível a ser elogiado em A Lenda de Korra é, definitivamente, a desenvoltura política. O primeiro livro girou em torno de Amon e sua imposição de uma igualdade brutal (socialismo); o segundo, em torno da guerra civil de motivações religiosas entre os irmãos Tonraq e Unalaq e suas respectivas Tribos da Água (teocracia); o terceiro, em torno da rejeição pregada por Zaheer e pela Lótus Vermelha de qualquer autoridade (anarquia); agora, a questão se pauta na centralização de poder nas mãos autoritárias de Kuvira (totalitarismo, aproximando-se também de um fascismo militarista).
    A princípio, não é difícil acreditar nas boas intenções da ditadora. Ela parece, de fato, estar disposta a amparar a população carente. No entanto, seus discursos de "restaurar a ordem a qualquer custo" acabam sendo suspeitos demais e o resultado, bem, basta conhecer um pouco de História para deduzi-lo. O Império da Terra passa a ser moldado por um forte militarismo, com "campos de disciplina" para presos políticos, atropelando qualquer oposição com o uso arbitrário da força.

    Como já foi dito nesta longa resenha, é muito complicado comparar A Lenda de Aang (A:TLA) com A Lenda de Korra (A:LOK), especialmente porque sempre haverá um certo apego ao primeiro desenho, que marcou a infância e a adolescência de muitos de nós. Todavia, apesar da inevitável parcialidade da qual partilho, sinto-me na obrigação de apontar as diferenças gritantes entre esses dois desenhos, principalmente a partir do Livro 2 com os gigantes coloridos, em cujo mérito não entrarei novamente. Os que encararem A:LOK como uma extensão do desenho antecessor se decepcionarão, pois o conteúdo, o humor, o zeitgeist (ou espírito de época) e a própria natureza dos conflitos mudam radicalmente. A Lenda de Aang é insubstituível, e precisamos conformarmo-nos com este fato. Mas isso não torna A Lenda de Korra algo necessariamente ruim, especialmente tendo em vista as suas tramas antagônicas que foram tão elaboradas que abordam conceitos de teoria política.
    A única restrição mais grave que faço é que, em A:TLA o tempo parecia ser melhor aproveitado, enquanto que, em A:LOK, os vinte minutos de cada episódio são sempre insuficientes, seja pela tão chamada enrolação por parte dos produtores, ou mesmo por falta de complexidade e profundidade na história. Ou talvez seja só uma impressão exclusivamente minha, sobretudo por sua subjetividade, então reservo aos leitores o direito de discordar.
    Ademais, vale muito a pena asssitir. Ainda que à sua própria maneira, tanto A Lenda de Korra quanto (e sobretudo) A Lenda de Aang são desenhos dos quais você jamais se esquecerá. É triste concluir tamanhas considerações com apenas esta frase de efeito, mas o fato é que não há muito o que falar quando a qualidade dos desenhos fala por si só.

Agradecimentos a Pedro Felipe e a Daniel Reis por revisarem o texto.