2015

    Mais ou menos por essa época do ano, tendo já feito as provas de vestibular, lembro-me de ter dito à minha mãe que, em um ano, minha vida seria radicalmente diferente ou radicalmente igual. Se isto era inspirador ou terrivelmente assustador, pouco importa, pois em qualquer um dos casos eu havia colocado sobre mim uma pressão que todo vestibulando carrega nos ombros um dia ou outro. Pois bem: aqui estou eu, em 2015, e fico aliviado em dizer que minha "profecia de boteco" se concretizou. Minha vida virou de ponta cabeça, e mais: da forma mais positiva que eu poderia em sã consciência imaginar.

     Não me entendam mal: meus amigos da cidade natal eram e continuam sendo pessoas maravilhosas, sobretudo alguns que conto no dedo e levo comigo até hoje, mesmo que por meio de reencontros. O abraço caloroso da Katita, que parece dizer sempre que vai ficar tudo bem; o sorriso e o bom humor inabaláveis da Marielle; as noites de tentativas culinárias (nem sempre desastrosas) com o Léo e com o Vinícius; as memórias de mais de 8 anos que este último tira do baú vez ou outra; as risadas da Marcela, que me levam junto e que com isso me fazem doer o estômago de tanto rir; as perguntas aparentemente incabíveis, mas certamente cômicas do Nicolas; os momentos de cumplicidade cinéfila que sempre partilhei com a Aline; e as longas horas de conversa que tenho com a Ingrid, não apenas minha irmã, mas também uma grande amiga. A lista continua, envolvendo também professores, que além de mestres se tornaram amigos muito prezados, e várias outras pessoas que tive a sorte de conhecer.
    E quando achei que não fosse haver mais dedos para contar os amigos do peito, me mudei para Curitiba e obtive assim a confirmação de que sempre cabe mais um. Tive a oportunidade de me aproximar de pessoas sem as quais — e digo isto sem exagero algum, lhes garanto — minha existência não faria mais tanto sentido. Não consigo imaginar minhas manhãs sem o jeitinho meigo da Camilla, com as coisas engraçadas que diz e que me dão cãibra nos lábios quando não consigo parar de rir; sem as perninhas espoletas da Bela, sua personalidade como uma das mais maduras que já conheci e suas opiniões sempre tão firmes e autênticas; sem as confidências mais profundas com a Gabi e os perrengues que passamos juntos; sem pavês deliciosos e vídeos de gatos da Yara, que dá os abraços mais reconfortantes de todos; sem o inconfundível jeito Isa de ser, tão Áries e tão doce ao mesmo tempo, e sem sua companhia para as noites sozinhas; e sem as palavras e gestos de apoio da Pat, que sempre — absolutamente sempre — está ali quando mais precisamos.
    Novamente, meus dedos já doem só de pensar em digitar todos os outros nomes que sustentam as minhas bases nessa nova vida, pois são realmente muitos. Porém, ainda que a custo de tornar o texto ainda mais piegas, farei essa concessão ao espírito de fim de ano e prolongarei aqui a lista. Jamais poderia deixar de citar, por exemplo, todos os seres excepcionais do Grupo Paulo Leminski (de escrita literária), com especial destaque à Bela (sim, são várias Belas em minha vida, e eu não poderia ser mais grato por isso), com as horas pós almoço que estendemos para conversar, sempre me ensinando muito a respeito da vida e do Direito; ao Fernando, sem o qual eu não teria tido forças para terminar o meu primeiro livro e para começar agora em dezembro o meu segundo; ao Juliano, com nossas infindáveis discussões ideológicas e ontológicas; ao Gapski, que é sem dúvidas a pessoa mais paz e amor daquela faculdade e a quem agradeço por namorar a Dafheny, pois assim pude conhecer uma das pessoas mais iluminadas com quem me deparei até hoje.
    Não nego: alguns nomes não me dei ao trabalho de mencionar por realmente não ir com a cara destas pessoas (e, se for o seu caso, creio que não será nenhum mistério). Do contrário, certamente não foi por esquecimento, e sim por, naturalmente, não haver espaço hábil. Outra parte, ainda, simplesmente preferi deixar de fora pois se tratam de pessoas que se sentiriam enojadas com uma dedicação tão melodramática, como o Igor ou o Guilherme, que provavelmente nem estão lendo isto.
    De qualquer forma, apesar do que foi dito, é claro que nem tudo são flores. Sair de casa e construir uma vida do zero, numa cidade nova e sem conhecer quase ninguém no início é um baque e tanto. É cair de paraquedas na vida adulta e perceber que a adolescência já passou e que está na hora de andar com as próprias pernas. O conforto de casa e o carinho próximo da família se esvaem junto com a própria certeza de que durante as noites você terá um lugar para cair morto. Mas tudo se ajeita, eventualmente. A família damos um jeito de visitar vez ou outra, sobretudo nas férias, e de conversar ao telefone quando possível. Enquanto isso, vamos construindo a nossa própria, com os amigos que escolhemos a dedo e que, muitas vezes também distantes de suas cidades de origem, assim como nós, encontram aconchego nos almoços de domingo, nas manhãs tediosas e nas noites onde festejam a embriaguez e as cantorias no karaokê do subsolo da faculdade.

Controle

    Às vezes eu gostaria que houvesse em mim um interruptor. Poderia, assim, permanecer acordado, pelo menos até quando eu próprio dispusesse do contrário. Estou farto de ter um súbito refluxo de inspiração em plena madrugada, quando as energias já me traem e os olhos ardentes me cobram as horas mal dormidas. Situação inversa também acontece com uma frequência inconveniente: não são poucos os dias em que me vejo amigo da disposição, por vezes de forma tão intensa que eu não conseguiria pregar os olhos nem se assim quisesse, mas que não me iluminam nem mesmo lampejos de inspiração. Meu cérebro parece ter assumido como função primeira a de sacanear minhas vontades sempre que possível, e, até onde pude constatar, tem sido bem sucedido nisso.
    Existe uma enorme gama de remédios dos quais eu poderia fazer uso para resolver esta questão, estou certo disto. Se estou disposto a pegar atalhos para obter este tão desejado controle sobre meu próprio corpo? Bem, a que custo? Criar voluntariamente uma dependência com a indústria farmacêutica, que lucra com as enfermidades alheias, e depois tornar-me escravo desta própria decisão inicial? E, além disso, abdicar de alguns anos de vida e, por que não, de uma considerável dose de sanidade? Não, obrigado. Como pode ver, o interruptor existe, mas não é um bom negócio.
     Talvez seja tolice minha, afinal. Pensamento bobo de quem cresceu acreditando em livre arbítrio, lendo filósofos existencialistas porém humanistas, e de quem de repente se deparou com a verdade de que não somos e não estamos livres nem de nós mesmos — somos eternos prisioneiros de nossas próprias limitações. Certamente fui utópico se um dia pensei que seria capaz de dizer à mente teimosa que horas devo dormir, que horas devo permanecer acordado, ou mesmo convencê-la de que de nada adianta sofrer pelo que vão pensar. Muito pouco se aproveita deste tipo de conversa consigo próprio; dessa tentativa constante de convencermos a nós mesmos das verdades que queremos construir. No máximo, nasce um ou outro texto de fluxo de consciência, destes que em pouco tempo serão empoeirados e que ao cabo têm pouca ou nenhuma utilidade, e mais uma madrugada tentando ouvir o barulho da chuva lá fora em lugar dos próprios pensamentos.