Ponto

     O ser humano possui um certo problema com a abstração de grandezas.
    A barata que entra pela janela decerto deve ter escolhido a casa errada, especialmente quando não estamos em nossos melhores dias. Apenas uma chinelada é suficiente para fazermo-nos sentir grandiosos diante da tal e mostrar quem manda. A menos, é claro, que ela voe; aí complica um pouco. O mesmo vale para o mosquito que, sabe-se lá como, encontra a única parte de nosso corpo descoberta antes de dormir — a cabeça — e insiste em zumbir em nossos ouvidos. Apesar do inevitável tapa que damos em nossas próprias orelhas, mostramos que estamos no controle.
    No entanto, não é difícil perdermo-nos em pensamentos ao olhar para cima num dia aberto e deparar com o gigante céu anil, cujas nuvens macias estão mais longe do que nossa mente pode sequer imaginar. Ou, ainda, surpreendermo-nos com as pessoas que viram pequenos pontinhos aos nossos olhares quando decolamos pela primeira vez.
    Somos apenas alguns dos tantos outros pontinhos que já pisaram e que ainda pisarão na Terra. Ela própria, inclusive, é outro pontinho azul, no meio do nada e rodeada por uma infinitude de outros pontos.
    Não importa o quão grandiosos nos sintamos ao realizar uma proeza, o número de diplomas acadêmicos acumulados ou mesmo a quantidade de zeros no saldo da conta bancária. O fato é que, se um minuto de reflexão for-nos permitido, sentiremos nos ossos e na carne o quão pequenos somos.
    Perceba, entretanto, que não há nada de errado com isso. O que nos distingue dos pontos de tinta — ou de pixels, se preferir — é que nós, ao contrário destes últimos, possuímos a capacidade de falar, comer, chorar, tolerar, sentir. Temos, sobretudo, sonhos, amores e outros pontinhos pelos quais viver. E se nos é dada a oportunidade de fazê-lo, é preciso que façamo-lo, seja como for. Contanto, claro, que nos sintamos bem e nos asseguremos de que ninguém é prejudicado.
     Tudo que fuja disso — arrogância, complexo de superioridade, autoritarismo, malevolência alheia — não tem fundamento, justamente por basear-se na premissa de que alguns pontinhos são maiores que outros. Não. Pontos são pontos. A paz reside em aceitar nossa pequenez humana com humildade.

— CONTO —

Charutos


    13 de julho de 1884. A escuridão e a névoa fria ofuscavam os largos troncos das árvores próximas, como de costume. Faziam-se audíveis somente minha respiração gelada e meu tique vicioso de bater as unhas no suporte de minha maleta de couro, o qual eu segurava. À distância, o ruído das engrenagens começou a preencher o ambiente, ao que os trilhos à minha frente tremiam em compasso. Uma luz ao longe ficava cada vez maior.
    — Boa noite, senhor — disse o comissário quando a porta do trem abriu para me receber. — Permita-me, sim?
    Subi a bordo e o rapaz prontamente recolheu meu casaco. O interior da maquinaria se encontrava quente e aconchegante. Encaminhei-me até a cabine indicada pelo bilhete e cumprimentei Rita, minha elegante colega de trabalho, e Edmundo, um comerciante de objetos pouco convencionais com o qual fiz amizade ao longo daqueles últimos meses.
    Rita passava batom frente a um espelho de mão quando dei a ela um sinal com os olhos, indagando quem seria aquele senhor ao seu lado. Ele usava uma bengala, mesmo estando sentado, bem como um chapéu bastante antigo e um álbum de fotos no qual parecia estar absorto. No entanto, Rita parecia conhecer o misterioso senhor tanto quanto eu: respondeu meu olhar com outro de semelhante incógnita. O mesmo valeu para Edmundo, que deu de ombros em resposta a meu gesto.
    — Com licença — disse o velhinho, após alguns minutos. Seu tom de voz era cordial e simpático. — Algum de vocês poderia fazer a gentileza de emprestar-me um charuto?
     Abri minha maleta e fiquei satisfeito encontrar a seção de charutos cheia. Eu havia parado de fumar, então tinha charuto de sobra. Retirei um e o ofereci ao nobre senhor, com um sorriso.
    A partir daí, tornamo-nos amigos de cabine. Os dias se passaram e, noite após noite pegando o trem a fins de trabalho, nós quatro conversávamos sobre as coisas da vida e tudo mais. Aquele humilde senhor de bengala demonstrava, em suas palavras, ser deveras sábio e ficava feliz em contar-nos algumas de suas histórias.
     Em uma destas noites, após eu oferecer-lhe o charuto como era habitual, o senhorzinho apontou para uma das casas no meio da floresta pela qual passávamos todas as noites e contou que chegou a morar ali por muitos anos. Explicou que, apesar do sorriso que levava no rosto todos os dias, seu passado era carregado de uma tristeza maior do que muitas pessoas poderiam aguentar.
     — Já tive muitos inimigos, fosse no trabalho, fosse em outros lugares — contava ele, ao som dos ruídos abafados do trem andando sobre os trilhos. — Mas nunca cheguei a levar as inimizades tão a sério. Um dia, ao chegar em casa, encontrei minha mulher e meus dois filhos, um de sete e um de dez, ensanguentados no chão.
     Tanto eu quanto Rita e Edmundo estávamos horrorizados. Ele continuou, olhando para o chão e recordando o passado doloroso:
     — Desde então, decidi sair de lá. Esquecer tudo o que aconteceu. Recomeçar algo novo, talvez. — Fez uma pausa. — Mas por mais que eu tente fugir, acabo sempre passando aqui perto, percebe? É como se eu estivesse preso ao passado, de alguma maneira.
     Aquilo entrou na minha cabeça de um modo impressionante. A empatia falou mais alto e não pude deixar de imaginar-me no lugar deste senhor, chegando em casa e encontrando minha esposa e minha filha assassinadas.
    Na noite seguinte, dividi a cabine somente com Rita e Edmundo. O senhor de bengala não apareceu mais. O mesmo se repetiu nos dez dias seguintes, até que Rita, preocupada com o que poderia ter acontecido com o senhorzinho, decidiu que deveríamos visitar sua antiga casa. Deste modo, talvez poderíamos contatar algum dos vizinhos e descobrir seu novo endereço.
    Assim fizemos. Num sábado, antes do pôr do sol, descemos do trem num ponto próximo e caminhamos até a casa para a qual ele havia apontado. Era grande, até maior que as outras ao redor, mas suas janelas estavam todas fechadas e a poeira acumulava sob a porta.
    De porta em porta, batemos nas casas vizinhas e, de todas, fomos atendidos somente em uma.
    — O que vocês querem? — sibilou a mulher idosa que abrira somente uma fresta da porta para falar conosco. Suas rugas denunciavam sua idade extremamente avançada.
    — Senhora, procuramos um senhorzinho que se mudou daqui há alguns anos — explicou Rita, com o tom mais amigável possível para lidar com a rispidez do olhar de sua interlocutora.
    — Como é o nome dele? — questionou a senhora.
    Olhamos uns para os outros e então tentamos buscar na memória. "Ele não disse o nome", percebi após refletir sobre o assunto.
    — Não sabemos, mas ele costumava morar ali naquele sobrado — respondeu Edmundo, apontando para a casa em questão.
     A mulher fez uma expressão de quem é intolerante a tolices e disse:
    — Não diga asneiras, rapaz. A família que morava naquela casa morreu há cinquenta anos.
     — Sim, sabemos. Mas estamos falando do pai da família. Procuramos ele.
     O rosto da mulher parecia expressar a dúvida de estarmos loucos ou, na pior das hipóteses, estarmos fazendo-lhe uma brincadeira de mal gosto. Em tom soturno, disse, muito brevemente:
     — Ele se matou logo após descobrir que a família estava morta.
     — Mas...
    Olhei minha maleta. Absolutamente todos os charutos estavam lá.

— NOTA —
Aos que leram até o final, recomendo que releiam a última fala do senhor de bengala a fim de entender o que ele realmente quis dizer.

O problema da direita/esquerda no Brasil

    Seja nos fóruns de discussão, nos comentários das redes sociais ou nas opiniões dos assíduos leitores dos sites de notícias, dez minutos de leitura são suficientes para que qualquer um com um mínimo de clareza política se estresse.
    Ainda que a situação do Brasil se deva a um contínuo processo histórico de alienação da população — no sentido etimológico da palavra, de "tornar alguém alheio a algo" — e de uma desesperança política crônica causada pela falta de integridade e de transparência dos que elegemos, a maioria das pessoas continua insistindo em discutir com todo ímpeto questões puramente ideológicas. E pior: isso está quase sempre ligado a um maniqueísmo extremista e, por mais redundante que possa soar, burro. Ou é direita, ou é esquerda. Se é assim que os brasileiros enxergam, discutamos então sobre esses dois lados.
    A direita é conhecida de longa data por argumentar com teorias conspiratórias ("Golpe comunista de João Goulart!"), por radicalizar o discurso do adversário político para deslegitimá-lo e por ignorar as mazelas sociais atribuindo a elas um caráter imaginário, como se fossem "espantalhos da esquerda". Isso quando não fazem uso das falácias ad hominem, o que, convenhamos, requer menos esforço cognitivo do que elaborar argumentos válidos.
    Já a esquerda costuma enfiar os pés pelas mãos ao tampar os olhos para a precariedade política e isolar-se num mundo fantasia onde algumas medidas assistencialistas são suficientes para compensar toda a falta de estrutura e oportunidades que a população carente continua enfrentando. É importante lembrar, queira a esquerda ou não, que só porque um governo é supostamente "o mais popular da história nacional", isso não significa que este governo esteja automaticamente isento de críticas. Alianças com a bancada ruralista e a obediência às chantagens da bancada evangélica continuam existindo, e ressaltar estes fatos não faz ninguém "coxinha".
    Claro, falta ponderação. É em tempos como este que a ausência de difusão de informação grita: o brasileiro tem o péssimo hábito de jogar todo o encargo para a principal figura de seu Executivo, o presidente. No entanto, é importante lembrar que a administração dos recursos referentes à educação — com exceção das universidades — e à saúde pública, bem como de muitos outros setores fundamentais ao desenvolvimento da sociedade, compete à esfera Estadual ou à Municipal. É por esta razão, dentre muitas outras, que o dedo deve pesar com consciência em absolutamente todas as vezes que este tocar a urna, não somente para eleger os presidenciáveis.
     Parcialidade sempre irá existir, seja por simpatia a determinada ideologia ou algo do gênero. No entanto, não devemos cair no erro de usar verdadeiros cabrestos ideológicos. Além disso, uma discussão só pode ser promissora a partir do momento em que os participantes lembram que não são crianças e que deselegâncias gratuitas não ajudam em nada.
     A fórmula para a construção ideal de um modelo democrático reside no constante questionamento do status quo, na humildade em aceitar ou rejeitar ideias diferentes das suas — sob a luz do senso crítico e da ponderação — e na maturidade em levar uma discussão sem picuinhas desnecessárias.

Franqueza

    Sempre tive um compromisso com a verdade. Não só de papel passado, mas também de coração. E não é nem questão de moralismo, como algumas pessoas podem pensar.
    A vida se constrói de pequenas conclusões às quais chegamos ao longo dos anos. Dezoito primaveras foram-me suficientes para perceber que tinha razão minha avó quando dizia que mentira tem perna curta.
    Que me perdoem os céticos, mas é fato. Faço aqui uma constatação empírica, seja ela garantida pela Lei de Murphy, pelo Logos, pelos princípios herméticos ou pelo que preferir. Quanto mais mentiras você traça para contornar as situações — ou as pessoas —, mais evidente é o risco de enrolar-se na própria teia.
    Claro, não sejamos presunçosos: o tempo varia. Não é do dia para noite. Pode levar um mês, um ano ou dois milênios. No entanto, o organismo vivo que é a verdade trabalha para vir à luz. Nesse meio-tempo, o que pode ter começado com uma palavra se torna uma bola de neve. Você pode até pará-la em um determinado ponto e achar que se safou, porém, apesar de não ter percebido, ela sujou todo o caminho por onde percorreu.
    Não venho por meio deste propor a discussão de debates abertamente filosóficos, religiosos ou políticos, até porque as linhas seriam incontáveis se as verdades relativas fossem o assunto. Antes, refiro-me à falta de comprometimento com as verdades cotidianas; à mentira contada aos pais para ir à tal festa; à justificativa inverídica dada à namorada quando é questionado se está tudo bem.
    A solução obviamente não é fazer voto permanente de sinceridade e viver como um monge tibetano. Não é preciso extremismo: é mais simples que isso. A paz reside em evitar mentiras desnecessárias. Caso contrário, você falta com a verdade com tamanha naturalidade que passa a perder a sinceridade até consigo mesmo; por consequência, perde a confiança em toda a raça humana, pelo simples motivo de não tê-la nem em si próprio.
     Adianto desde já, porém, que cometem um grotesco equívoco os que hasteiam a bandeira do "sou sincero a qualquer custo". Sinceridade não significa dizer o que quiser a quem quiser. É preciso tomar cuidado para não tornar tênue a linha entre franqueza e crueldade. Os que não conseguem guardar comentários desnecessários para si próprios deixam transparecer a infantilidade ao lidar com o mundo que os cerca. Isso não é ser autêntico; é ser mal educado. É perfeitamente possível ser franco sem cair na deselegância; com empatia e gentileza, tudo se resolve. É só questão de saber como fazê-lo.
    Mas voltando aos que abraçam a mentira como se esta fosse um remédio rápido para as mais simples situações, é importante ressaltar que a natureza tem seus meios para fazer a verdade vir à tona. Trata-se de praticidade: se é somente uma questão de tempo para surtir as consequências, por que mentir? No final, a mentira acaba invariavelmente custando mais caro que a verdade. A verdade é filha do tempo.