Quem vai pagar a Copa

    Hoje inicia-se a Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. Sim, Brasil, país no qual crianças e idosos morrem na fila do pronto-socorro; onde uma educação pública de qualidade chega a ser risível, de tão surreal; cuja população, especialmente a marginalizada, é deixada às mínguas e do qual a desesperança política já se apoderou há tempos. Entretanto, não gastemos mais tempo em discorrer sobre o panis et circenses ou sobre outros temas já percebidos por qualquer um que tenha uma dose mínima de lucidez. Falemos do que foge ao óbvio; no caso, por um viés mais econômico.

    Compete ao Governo fornecer todo o tipo de preparação para a Copa, seja ela direta ou indireta. Sendo assim, é evidente que a construção e a manutenção dos estádios, bem como de uma infraestrutura urbana que dê suporte à demanda turística, seja bancada com dinheiro proveniente dos cofres públicos.
    Aos que se permitirem a reflexão, causa grande estranheza a incoerência em financiar um evento privado com verba pública e, de modo contraditório, cobrar pelo acesso a ele um valor absurdo dos brasileiros, que já sustentam o evento pagando um dos maiores encargos tributários do mundo. É como se a natureza do evento fosse de uma duplicidade que depende da conveniência: público no que diz respeito a parasitar a máquina estatal, privado quando se trata de arrecadar lucros exorbitantes.
    Os simpáticos à Copa decerto cometem a ilusão de argumentar que o turismo decorrente dela compensa o prejuízo, pois traz benefícios. A pergunta é: benefícios a quem, exatamente? Além das aberrações jurídicas como os tão chamados tribunais de exceção que serão instalados nas proximidades dos estádios, com penas mais severas e julgamento sem ampla defesa[1], é garantido aos estádios e a outros eventos menores atrelados à FIFA o monopólio comercial num raio de 2km, o que não deixa de implicar em duas violações à Constituição Federal: primeiro em razão da privatização de uma área pública — tanto da rua quanto do estádio, que, lembremos, foi financiado com o dinheiro do povo — e, por extensão, o desrespeito ao artigo 5º, que assegura o direito de ir e vir; e em segundo lugar pela oligopolização, que não passa de uma espécie de cartel legitimado pelo próprio Estado.
     Portanto, os únicos verdadeiramente beneficiados são as grandes empresas parceiras da FIFA, com permissão comercial exclusiva nos arredores do evento. Quanto à suposta movimentação da economia gerada no restante das áreas, os comerciantes podem até faturar muito mais do que o convencional, mas estes preços recaem também sobre a gigante parcela da população que não tira o sustento do comércio, como funcionários públicos. No fim, o que sobra é uma concentração de renda ainda maior.
    Algumas vantagens estruturais podem até vir em decorrência da Copa, como o funcionamento do metrô de Salvador após 14 anos de atraso de obras ou melhoras quantitativas no meio rodoviário. No entanto, cabe ponderar que estas medidas só se deram devido à urgência de comportar a leva turística no país. A longo prazo, dificilmente será mantida a manutenção ou mesmo o uso de tais melhorias. O mesmo se aplica aos estádios que, embora fiquem "para a posterioridade", certamente não terão tanta utilidade como teriam, por exemplo, hospitais em zonas periféricas.
    Não se trata de ser contra o espírito futebolístico. Pelo contrário! É ser contra a comercialização do mesmo; é perceber o quão incabível é a restrição do acesso ao esporte, limitando-o às pessoas que podem pagar três salários mínimos para ter acesso a um ingresso.
    O problema não reside na Copa em si, mas em sua gestão. Seria interessante — e sobretudo coerente — se ela fosse sustentada pela iniciativa privada, sem o envolvimento direto de dinheiro público. Além de ser mais democrático por ter como financiadores apenas os que de alguma forma se interessam pelo evento, também evitaria os enormes desvios de verba, pois como diz a máxima popular, doeria no bolso dos grandes empresários.
    Em tempos de crise conjuntural, não podemos nos dar o luxo de aceitar o que nos impõem. É preciso questionar quanto e a quem custará um "olê, olê olê olá".

— CONTO —

Viver para trabalhar

     Sueli odiava acordar às seis em ponto. Correção: Sueli odiava acordar. Fazia-o primeiro por necessidade, pois os relatórios do escritório não iriam fazer-se sozinhos, e segundo porque quanto mais rápido saísse de perto de seu marido, melhor. Jorge e ela eram casados havia vinte e nove anos; detestavam-se havia dezesseis.
     Quando se dirigiu ao banheiro para realizar as necessidades matinais, encontrou a tampa do vaso sanitário levantada. Embora assim estivesse todas as manhãs, aquilo não deixava de irritá-la nem mesmo por um dia. Aliás, várias eram as coisas que incomodavam-na. Suas rugas no espelho que teimavam em dedurar sua idade; o porteiro do prédio que fazia questão de dar bom-dia, como se sua existência fosse minimamente significante para Sueli; o malabarista de semáforo que, mesmo não sendo requisitado, insistia em realizar seu show e tinha a petulância de cobrar por ele; pessoas que demoravam na fila da cafeteria por estarem indecisas sobre qual tipo de cappuccino pedir; o atendente que sorria de orelha a orelha dizendo: "Volte sempre!".
    Este último item era especialmente desagradável para Sueli pois, pelo princípio social de reciprocidade (ainda que falsa), ela era obrigada a sorrir de volta. Seria muito mais aprazível se o atendente em questão simplesmente cumprisse o trabalho ao qual foi designado, em vez de abrir um sorriso cínico a cada cliente.
     Café tomado. Lá ia ela para mais um dia de trabalho. O único lado bom de fazer parte de um grande escritório era ter um bom lugar para estacionar o carro; de resto, não se aproveitava nada: ter que conviver com colegas de trabalho detestáveis que só sabiam falar de si próprias e de suas ambições medíocres; agradar e obedecer seu superior, cujo único mérito necessário para ter chegado àquele cargo fora ter um parentesco com o diretor da empresa; preparar documentos carregados de linguagem técnica para resolver problemas inúteis de pessoas com as quais sequer se importava.
    Trabalho. Enxaqueca. Mais trabalho.
    O relógio parecia estar de mal com Sueli, pois andava a passos de tartaruga. Quando finalmente deu o horário, aproveitou que havia uma farmácia ali perto e comprou o primeiro tarja preta que encontrou.
    Chegou em casa e foi recebida por Jorge não com um "Como foi seu dia?", mas com um "Cadê a janta?". Sua resposta, pouparemos o leitor de saber, por razões éticas. Deu as costas e foi até o quarto observar sua coleção de sapatos, sua única fonte de tranquilidade.
    Sueli nunca parou para pensar o que estava fazendo com sua vida. Trabalhava, trabalhava e trabalhava, afinal, era preciso pagar as contas. Ademais, assistia Zorra Total aos sábados, lia e concordava com colunistas da Veja, visitava os parentes dos quais não gostava nos finais de ano e viajava para algum lugar costumeiro quando sobrava algum dinheiro.
     Ainda que de forma intuitiva, Sueli mantinha uma opinião de cunho estoico no sentido de justificar o conformismo como sendo tão natural quanto a inércia. Conduzia seus dias de forma mecânica, sem ter consciência disso. Mas tudo bem, porque, para ela, felicidade só existia em conto de fadas. Quem tentasse fugir da "vida real" não passava de um tolo.
    Ao fim, Sueli nunca conheceu a vida real, tampouco vida alguma. Ao seu enterro, só uma pessoa compareceu: o porteiro de seu prédio.