O machismo nosso de cada dia

    Se quiser ser respeitada, mulher tem que dar-se ao respeito. Certo? Não. Não está certo porque respeito não é negociável. Antes de homens ou mulheres, somos pessoas. Nossos direitos não são condicionais. A afirmação de que "Fulana só deve ser respeitada se..." está errada. Fulana é humana, portanto deve ser respeitada. Ponto.
    Muitos que estão lendo isto agora podem estar pensando com seus botões que machismo não existe e que isso "é coisa que gente cri cri inventa para vitimizar o gênero feminino". Neste caso, preciso respirar fundo e contar até dez.
    Você já parou para analisar de onde provêm as palavras de baixo calão — os tão chamados palavrões — e o que elas supõem? Para os homens, viado, boiola, bicha, baitola, mulherzinha. Notou algum padrão? São só alguns exemplos, mas assim como estes, a esmagadora maioria das outras ofensas aos homens se baseiam em "ser mulher", pressupondo automaticamente que isto é algo negativo. Na outra ponta, você não vê uma mulher sendo ofendida de homenzinho, porque este aparentemente não é um atributo negativo.
    As ofensas para as mulheres vão mais além. Puta, vadia, vaca, cadela, piranha etc. Quando as expressões são imperativas, vai se foder, vai tomar no cu. Todas estas expressões se sustentam em atribuir uma imagem de pessoa promíscua, corrompida, sexualmente ativa; imagem esta intrínseca às funções sexuais femininas. Até quando o alvo não são necessariamente as mulheres, são elas as atacadas, como em filho(a) da puta. Novamente, é muito improvável ouvir alguém usando filho(a) do puto como xingamento, simplesmente porque ter vida sexualmente ativa para nós homens é motivo de orgulho, não de vergonha. Mesmo para o inglês, a observação é válida. Bitch, slut, cunt, skank e whore são alguns exemplos que dizem respeito às mulheres e faggot, pussy e queer aos homens.
    Ao contrário do que alguns podem inferir, esta análise linguística não é meramente questão de ser politicamente correto. Não é de forma alguma algo insignificante. Pelo contrário. Sendo a língua o principal método de comunicação humana, nela estão esculpidos os paradigmas mais profundos da sociedade. Afirmar o contrário é admitir uma falta de percepção sem tamanho.
    Para contestar que os termos usados não só possuem uma forte conexão com a mentalidade popular como também a refletem, ilustremos aqui uma situação não muito incomum. Imagine que sua filha, seja ela real ou fictícia, esteja interessada em sair com um amigo. Amigo do qual você nunca ouviu falar. Como um bom pai ou mãe, você ouve a conversa de telefone dos dois por trás da porta e subentende que estão planejando ter a primeira relação sexual de suas vidas. Por mais óbvia que seja a pergunta, hei de fazê-la: você daria a ela total liberdade?
    Responda-me agora a mesma pergunta, com o pequeno detalhe de que desta vez é seu filho. Ele pedindo ou não permissão, você o impediria de ter relacionar-se sexualmente com uma amiga? Certamente que a resposta foi diferente.
    "Mas homem é diferente!", posso ouvir alguns reacionários em seu mini-ataque de descontentamento. Claro que é diferente; isso eu já sei. No entanto, ouso questionar: por que é diferente? "Porque é preciso proteger as mulheres." Concordo. Mas proteger do quê? Por que, para uma mulher, ter relações sexuais é visto como algo ruim que deve ser evitado?
    Perceba que o problema aqui não é necessariamente a ideia de que sexo corrompe, o que aumentaria drasticamente o escopo da discussão e envolveria variáveis religiosas que dizem respeito ao ideal ascético. O foco da crítica gira, na verdade, em torno da limitação destas regras somente ao sexo feminino. Por que quando uma mulher tem uma vida sexualmente ativa é "entregar-se à pecaminosidade carnal" e quando um homem faz o mesmo é perfeitamente aceitável?

“Respeito não é negociável. Nossos direitos não são condicionais. Fulana é humana, portanto deve ser respeitada. Ponto.
    Talvez por ser uma das premissas do movimento, este tipo de linha de raciocínio torna inevitável falarmos do feminismo. Confesso que, de início, eu próprio era contrário ao feminismo. Convenhamos: o nome soa controverso. A impressão que ele passa, embora errônea, é a do feminismo como postura inversa do machismo. Porém, algumas poucas leituras foram-me suficientes para o esclarecimento de que na realidade o nome desta linha de pensamento que prega a superioridade das mulheres sobre os homens é femismo, sem o "ni". Feminismo, por outro lado, refere-se a igualdade e nada mais.
    Você não precisa abandonar seus valores, por mais retrógrados que sejam. É preciso apenas que você utilize os mesmos critérios para ambos os sexos. Se for para demonizar o sexo, que seja para ambos os gêneros, e não só para as mulheres. Se for para encarar como algo natural que, sendo consensual, não faz mal a ninguém, o mesmo se aplica.
     Se você acha que as mulheres, tais como os homens, devem ter direito de vestir-se como bem entenderem, desde uma minissaia até uma burca; que elas devem ter controle sobre o próprio corpo sem pessoas alheias dando palpites agressivos; que possa haver sim uma divisão de tarefas em casa, não reservando tudo apenas para a mulher; e que mulher não é um objeto, parabéns, você é feminista.
    Cabe pontuar algo que muitos se esquecem: quando se trata de igualdade, é preciso ver os dois lados da moeda. O feminismo genuíno não apoia "privilégios" (as aspas estão aí para evitar possíveis aberturas de discussões) femininos, como a diferenciação na obrigatoriedade do alistamento militar ou a entrada grátis em determinados eventos. Não se trata da falácia do verdadeiro escocês, e sim de coerência: um movimento que prega a igualdade automaticamente se desvia de seus princípios caso seja a favor de tratamentos desiguais, sejam eles benéficos ou não.
    Quanto ao aprofundamento da análise linguística no qual algumas pessoas são bastante chegadas, vejo alguns questionamentos como válidos e outros, nem tanto. A generalização automática para o masculino, por exemplo, merece um espaço na pauta de discussões, afinal dez meninas serão chamadas de "os meninos" se houver mesmo apenas um menino ali e isto poderia ser facilmente resolvido trocando por "as meninas e o menino". Entretanto, flexibilizações forçadas e deselegantes, aceitas ou não pela língua portuguesa, como presidenta passam dos limites do bom senso. Não vejo estudanta e representantas por aí.
     Em relação às pessoas que para contradizer o feminismo recorrem ao lamentável episódio que trouxe a Marcha das Vadias à tona nos noticiários, fico em dúvida se a falta de lógica se baseia na desinformação ou simplesmente na má vontade de entender. Usar eventos isolados e minoritários para deslegitimar todo um movimento justo tal como o feminismo é incabível. O grupo da Marcha das Vadias, mais especificamente aquele grupo que realizou a manifestação de profundo mal gosto, não representa toda a militância.
    Apesar de todas estas considerações, vale enfatizar que o título não foi pensado ao acaso. "O machismo nosso de cada dia" porque mesmo tendo consciência de tudo o que foi discorrido, todos nós manifestamos em forma e grau específicos um certo machismo, ainda que não seja proposital. Não é da noite para o dia que conseguiremos extirpar as intolerâncias da sociedade. Colocar-se no lugar do próximo requer esforço, porém, além de ser possível, é necessário. Não é natural ou sequer minimamente admissível que praticamente metade da população do planeta (as mulheres) se sinta excluída de alguma forma.

As cotas e o Dr. MEC

    Pouco mais de um ano atrás, escrevi sobre as cotas. Contudo, sinto que além de ter faltado propostas concretas para solucionar o problema, não levantei algumas questões indubitavelmente essenciais à discussão. Devo confessar também que, diferente de antes, me questionei muito a respeito e cheguei a mudar de ideia diversas vezes. E creio ser importante dizer que ainda assim minha opinião está sujeita a mudanças. Afinal, que sentido faria debater sobre uma determinada temática se as pessoas não estiverem dispostas a refletir e, eventualmente, aceitar ideias diversas?
    Bom, hei de insistir em alguns pontos bastante cruciais que já abordei no outro texto. Comecemos por talvez o principal deles, que é o esclarecimento da questão que as pessoas mais costumam confundir: se existe desigualdade, seja no que tange a etnia dos candidatos ou a condição financeira, a universidade não é a causadora desta desigualdade, e sim a vítima. Isso porque o vestibular é um dos pouquíssimos sistemas no Brasil que são baseados, em sua essência, na mais pura meritocracia. A prova não contém um campo "etnia" a ser preenchido, muito menos um intitulado como "renda familiar". Pode existir, no máximo, questionários socioeconômicos com finalidade puramente estatística, mas estes dados jamais influenciam na nota final do estudante. O vestibular está interessado somente e tão somente em testar as habilidades relacionadas à educação — seja o raciocínio, a chamada bagagem de conhecimento e coisas do gênero.
    Perceba, entretanto, que não enfatizei a parte "em sua essência" à toa. O motivo parece um tanto quanto óbvio, mas é necessário dar a ele um destaque especial na pauta de discussão. A educação, justamente a suposta encarregada de preparar o aluno para os exames vestibulares, não é tão democrática quando deveria ser. Com algumas poucas exceções, o ensino público brasileiro é extremamente deficitário em vários quesitos e, conforme as tristes estatísticas nos mostram, não tem condição de competir com o ensino privado. Cria-se assim, ainda que indiretamente, uma aniquilação da verdadeira meritocracia, fazendo competir pessoas cujas oportunidades foram completamente desiguais.
    Diante desse triste cenário, chega a ser absurdo o fato de que o Ministério da Educação (MEC), em vez de se empenhar genuinamente para melhorar a situação deplorável do ensino público no país, prefira ignorar a realidade e buscar resultados rápidos por meio de deturpações pitorescas a um dos únicos sistemas que de fato trabalham por meio da mais legítima democracia, o vestibular. Se as condições escolares são desiguais, é justamente isso que precisa ser revisto, e não os sistemas avaliativos. Além de esta postura ser injusta inclusive com os próprios cotistas — afinal, como cidadãos, eles também merecem uma educação de qualidade —, é de uma estupidez sem tamanho, pois a medida visa a resultados imediatistas e de curto alcance, prova de que o Governo está se lixando para mudanças permanentes e de longo prazo.
    Tomando a liberdade para metaforizar, seria como um doutor (chamado, por mera coincidência, de Dr. MEC) que, em vez de sugerir a seu paciente enfermo um tratamento longo e difícil — porém eficiente —, simplesmente adulterasse o exame e o fornecesse um diagnóstico que indicasse ao paciente perfeita saúde. O doente sairia muito feliz do hospital, com certeza, mas seria justo? Cabe questionar, ainda, os motivos que realmente levaram o Dr. MEC a fazer isso. Será que é por conta desta medida ser muito mais fácil e barata, ou será que a verdadeira intenção não seria aumentar as estatísticas de pacientes saudáveis do hospital? São só suposições, claro, mas eu particularmente apostaria minhas fichas em ambas as opções.

Se as condições escolares são desiguais, é justamente isso que precisa ser revisto, e não os sistemas avaliativos.
    Quando se trata da questão educacional, tenhamos em mente que ela é emergencial e que soluções vagas ou mágicas não suprem o problema. O ensino público no Brasil demanda propostas sólidas, realistas e acima de tudo criativas. Quanto a isso, por que não aproveitar a qualidade do ensino privado e aplicar medidas afirmativas justamente aí? Criar e fazer vigorar uma lei que determine, por exemplo, que 20% das vagas das escolas particulares sejam contempladas com bolsa integral seria uma boa pedida. No que diz respeito às pessoas que precisam de ajuda imediata, o mesmo também se aplicaria aos cursinhos preparatórios. É claro que os 20% são meramente especulativos; seria necessário, antes, um estudo maior para determinar até que ponto as medidas não são abusivas. E são bem-vindas propostas de reduzir os altos impostos que são cobrados dos colégios particulares, a fim de tornar as medidas afirmativas ainda mais viáveis.
(...) É injusto com os próprios cotistas — afinal, como cidadãos, eles também merecem uma educação de qualidade.
    Vale ressaltar, no entanto, que ainda assim soluções como esta precisam ser temporárias, para que não haja conformismo governamental e para que não cessem as cobranças por melhorias, como acontece atualmente com as cotas. E mesmo enquanto esta suposta lei de bolsas integrais estiver vigorando, o pensamento a longo prazo é indispensável: é necessário haver investimento constante e pesado na educação pública, não somente no que tange à verba governamental, mas principalmente em reformas administrativas. É preciso que os professores sejam melhor pagos — pois deste modo irá ocorrer uma real valorização desta profissão e a própria concorrência se encarregará de selecionar profissionais cada vez mais capacitados —, que a estrutura hierárquica seja renovada, que a burocracia do sistema pare de impedir inovações e que os alunos sejam, de fato, ouvidos.
    Uma outra proposta que, apesar de ousada, é bastante interessante seria com certeza o PL 480/2007 que, como consta na íntegra, "determina a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas". O projeto diz por si só. Os que são contra, tais como o senador Anibal Diniz (PT), argumentam que fere o livre arbítrio previsto pela Constituição e que a proposta "possui um quê de autoritarismo", e, numa análise superficial, talvez não estejam tão errados. Todavia, ninguém é obrigado a possuir um cargo público. Se a pessoa em questão se propôs a governar e, por extensão, ser fator determinante do sistema público, nada mais justo que ela dependa do sistema que ela própria constrói. Não é uma imposição, e sim uma condição óbvia para exercer o cargo, da mesma forma que um presidente é obrigado a viver em seu próprio país. Condição esta que apenas assegura a coerência: se os governantes estiverem verdadeiramente empenhados em melhorar o ensino público, não têm o que temer. Um político colocar seu filho numa escola privada me soa como uma profunda hipocrisia.
    Quanto às cotas raciais, torno a afirmar que são incabíveis. Não porque não existe discriminação, pois existe, mas porque ela não é parte do mecanismo de seleção dos vestibulares. Os negros, por exemplo, deixam de entrar nas universidades não porque são negros, e sim por fazerem parte de um grupo financeiramente marginalizado na sociedade, sendo assim dependentes, em grande parte, do ensino público. Deste modo, se acabarmos com o déficit da educação pública do país com as propostas já discutidas nos parágrafos acima, estaremos automaticamente combatendo de modo implacável a desigualdade racial.
    No entanto, o assunto não é tão simples a ponto de acabar aí. O buraco é mais embaixo. É importante lembrar que diploma não é sinônimo de emprego, especialmente no que diz respeito às profissões cujos responsáveis por empregar pessoas são os selecionadores. O vestibular pode até trabalhar pelas vias mais limpas de meritocracia, mas as entrevistas de emprego não. Não existe prova concreta, mas uma rápida olhada nos dados e um tiquinho de raciocínio são o bastante para nos fazer enxergar a triste realidade: a cor da pele infelizmente influencia sim a escolha ou não de um determinado candidato à vaga de emprego. É justamente  que cabem ações governamentais tais como as cotas, e não no exame de seleção para as universidades.
    Por fim, espero ter deixado bem claro que, embora minha posição antiga em relação às cotas universitárias não tenha se alterado, houve uma postura de maior preocupação com problemas sociais e uma reflexão realista acerca de soluções a respeito. Em suma, é possível concluir que medidas afirmativas são bem-vindas, mas precisam ser aplicadas no lugar correto e de maneira prudente. O uso das cotas como propaganda eleitoral — assim como temos visto ultimamente — é absolutamente inaceitável, e o tratamento delas como se fossem a solução definitiva para os diversos tipos de desigualdade, mais ainda.