As cotas e o Dr. MEC

    Pouco mais de um ano atrás, escrevi sobre as cotas. Contudo, sinto que além de ter faltado propostas concretas para solucionar o problema, não levantei algumas questões indubitavelmente essenciais à discussão. Devo confessar também que, diferente de antes, me questionei muito a respeito e cheguei a mudar de ideia diversas vezes. E creio ser importante dizer que ainda assim minha opinião está sujeita a mudanças. Afinal, que sentido faria debater sobre uma determinada temática se as pessoas não estiverem dispostas a refletir e, eventualmente, aceitar ideias diversas?
    Bom, hei de insistir em alguns pontos bastante cruciais que já abordei no outro texto. Comecemos por talvez o principal deles, que é o esclarecimento da questão que as pessoas mais costumam confundir: se existe desigualdade, seja no que tange a etnia dos candidatos ou a condição financeira, a universidade não é a causadora desta desigualdade, e sim a vítima. Isso porque o vestibular é um dos pouquíssimos sistemas no Brasil que são baseados, em sua essência, na mais pura meritocracia. A prova não contém um campo "etnia" a ser preenchido, muito menos um intitulado como "renda familiar". Pode existir, no máximo, questionários socioeconômicos com finalidade puramente estatística, mas estes dados jamais influenciam na nota final do estudante. O vestibular está interessado somente e tão somente em testar as habilidades relacionadas à educação — seja o raciocínio, a chamada bagagem de conhecimento e coisas do gênero.
    Perceba, entretanto, que não enfatizei a parte "em sua essência" à toa. O motivo parece um tanto quanto óbvio, mas é necessário dar a ele um destaque especial na pauta de discussão. A educação, justamente a suposta encarregada de preparar o aluno para os exames vestibulares, não é tão democrática quando deveria ser. Com algumas poucas exceções, o ensino público brasileiro é extremamente deficitário em vários quesitos e, conforme as tristes estatísticas nos mostram, não tem condição de competir com o ensino privado. Cria-se assim, ainda que indiretamente, uma aniquilação da verdadeira meritocracia, fazendo competir pessoas cujas oportunidades foram completamente desiguais.
    Diante desse triste cenário, chega a ser absurdo o fato de que o Ministério da Educação (MEC), em vez de se empenhar genuinamente para melhorar a situação deplorável do ensino público no país, prefira ignorar a realidade e buscar resultados rápidos por meio de deturpações pitorescas a um dos únicos sistemas que de fato trabalham por meio da mais legítima democracia, o vestibular. Se as condições escolares são desiguais, é justamente isso que precisa ser revisto, e não os sistemas avaliativos. Além de esta postura ser injusta inclusive com os próprios cotistas — afinal, como cidadãos, eles também merecem uma educação de qualidade —, é de uma estupidez sem tamanho, pois a medida visa a resultados imediatistas e de curto alcance, prova de que o Governo está se lixando para mudanças permanentes e de longo prazo.
    Tomando a liberdade para metaforizar, seria como um doutor (chamado, por mera coincidência, de Dr. MEC) que, em vez de sugerir a seu paciente enfermo um tratamento longo e difícil — porém eficiente —, simplesmente adulterasse o exame e o fornecesse um diagnóstico que indicasse ao paciente perfeita saúde. O doente sairia muito feliz do hospital, com certeza, mas seria justo? Cabe questionar, ainda, os motivos que realmente levaram o Dr. MEC a fazer isso. Será que é por conta desta medida ser muito mais fácil e barata, ou será que a verdadeira intenção não seria aumentar as estatísticas de pacientes saudáveis do hospital? São só suposições, claro, mas eu particularmente apostaria minhas fichas em ambas as opções.

Se as condições escolares são desiguais, é justamente isso que precisa ser revisto, e não os sistemas avaliativos.
    Quando se trata da questão educacional, tenhamos em mente que ela é emergencial e que soluções vagas ou mágicas não suprem o problema. O ensino público no Brasil demanda propostas sólidas, realistas e acima de tudo criativas. Quanto a isso, por que não aproveitar a qualidade do ensino privado e aplicar medidas afirmativas justamente aí? Criar e fazer vigorar uma lei que determine, por exemplo, que 20% das vagas das escolas particulares sejam contempladas com bolsa integral seria uma boa pedida. No que diz respeito às pessoas que precisam de ajuda imediata, o mesmo também se aplicaria aos cursinhos preparatórios. É claro que os 20% são meramente especulativos; seria necessário, antes, um estudo maior para determinar até que ponto as medidas não são abusivas. E são bem-vindas propostas de reduzir os altos impostos que são cobrados dos colégios particulares, a fim de tornar as medidas afirmativas ainda mais viáveis.
(...) É injusto com os próprios cotistas — afinal, como cidadãos, eles também merecem uma educação de qualidade.
    Vale ressaltar, no entanto, que ainda assim soluções como esta precisam ser temporárias, para que não haja conformismo governamental e para que não cessem as cobranças por melhorias, como acontece atualmente com as cotas. E mesmo enquanto esta suposta lei de bolsas integrais estiver vigorando, o pensamento a longo prazo é indispensável: é necessário haver investimento constante e pesado na educação pública, não somente no que tange à verba governamental, mas principalmente em reformas administrativas. É preciso que os professores sejam melhor pagos — pois deste modo irá ocorrer uma real valorização desta profissão e a própria concorrência se encarregará de selecionar profissionais cada vez mais capacitados —, que a estrutura hierárquica seja renovada, que a burocracia do sistema pare de impedir inovações e que os alunos sejam, de fato, ouvidos.
    Uma outra proposta que, apesar de ousada, é bastante interessante seria com certeza o PL 480/2007 que, como consta na íntegra, "determina a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas". O projeto diz por si só. Os que são contra, tais como o senador Anibal Diniz (PT), argumentam que fere o livre arbítrio previsto pela Constituição e que a proposta "possui um quê de autoritarismo", e, numa análise superficial, talvez não estejam tão errados. Todavia, ninguém é obrigado a possuir um cargo público. Se a pessoa em questão se propôs a governar e, por extensão, ser fator determinante do sistema público, nada mais justo que ela dependa do sistema que ela própria constrói. Não é uma imposição, e sim uma condição óbvia para exercer o cargo, da mesma forma que um presidente é obrigado a viver em seu próprio país. Condição esta que apenas assegura a coerência: se os governantes estiverem verdadeiramente empenhados em melhorar o ensino público, não têm o que temer. Um político colocar seu filho numa escola privada me soa como uma profunda hipocrisia.
    Quanto às cotas raciais, torno a afirmar que são incabíveis. Não porque não existe discriminação, pois existe, mas porque ela não é parte do mecanismo de seleção dos vestibulares. Os negros, por exemplo, deixam de entrar nas universidades não porque são negros, e sim por fazerem parte de um grupo financeiramente marginalizado na sociedade, sendo assim dependentes, em grande parte, do ensino público. Deste modo, se acabarmos com o déficit da educação pública do país com as propostas já discutidas nos parágrafos acima, estaremos automaticamente combatendo de modo implacável a desigualdade racial.
    No entanto, o assunto não é tão simples a ponto de acabar aí. O buraco é mais embaixo. É importante lembrar que diploma não é sinônimo de emprego, especialmente no que diz respeito às profissões cujos responsáveis por empregar pessoas são os selecionadores. O vestibular pode até trabalhar pelas vias mais limpas de meritocracia, mas as entrevistas de emprego não. Não existe prova concreta, mas uma rápida olhada nos dados e um tiquinho de raciocínio são o bastante para nos fazer enxergar a triste realidade: a cor da pele infelizmente influencia sim a escolha ou não de um determinado candidato à vaga de emprego. É justamente  que cabem ações governamentais tais como as cotas, e não no exame de seleção para as universidades.
    Por fim, espero ter deixado bem claro que, embora minha posição antiga em relação às cotas universitárias não tenha se alterado, houve uma postura de maior preocupação com problemas sociais e uma reflexão realista acerca de soluções a respeito. Em suma, é possível concluir que medidas afirmativas são bem-vindas, mas precisam ser aplicadas no lugar correto e de maneira prudente. O uso das cotas como propaganda eleitoral — assim como temos visto ultimamente — é absolutamente inaceitável, e o tratamento delas como se fossem a solução definitiva para os diversos tipos de desigualdade, mais ainda.