Chave

Já dizia Clarice
Não a ruiva, de papel
Mas a que antes foi de carne,
osso e pensamento
E que hoje é só osso e pensamento.

Já dizia-me ela,
a Clarice do meu eu
lírico, interior:

"Por que te importas?
Que te importas?

Cá estou aqui,
tênue linha do real e do irreal.
Pois que ainda assim
Tens em mim e somente em mim
a resposta."

Busco conforto, sim
Mas busco antes compreensão
E sobretudo reconhecimento
Dos que serão, um dia
portadores da chave.

A dúvida, portanto
Ressoa como as poderosas engrenagens
Em cujo ruído fora aberta.

— RESENHA —

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

    Desde seu lançamento, em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (do francês "Le fabuleux destin d'Amélie Poulain") já a princípio instigava o expectador quanto a seu título enigmático, o qual faz jus à peculiar misteriosidade do longa-metragem. Não é para menos: das 109 nominações aos mais diversos prêmios do cinema internacional, o filme venceu 54.[1] A crítica aplaudiu de pé o roteiro e a direção de Jean-Pierre Jeunet, que também desenvolveu outros famigerados filmes franceses.

   Já nos primeiros minutos, Amélie, a protagonista, revela-se como uma figura graciosamente estranha. Por ter pais frios e distantes, está habituada ao seu próprio isolamento. Não há abraços ou manifestações de carinho; as únicas ocasiões em que recebe atenção são as que seu pai, com um estetoscópio, realiza o exame clínico mensal. Por não estar acostumada com este tipo de contato tão direto, Amélie tem seu coração disparado; disto, seu pai conclui uma anomalia cardíaca. Sua mãe, professora severa e carregada de perturbações neuróticas, decide que Amélie deve ter aulas em casa, em decorrência do falso diagnóstico.
    A parte graciosa disto tudo é que a menina, sempre muito imaginativa, refugia-se num mundo que ela própria criou. Enxerga a realidade de maneira ímpar, de modo que seu único amigo é um peixe. Porém, a estranheza não acaba aí: este peixe, que de fato existe, é neurótico e tem instintos suicidas, pulando muitas vezes para fora do aquário e causando um pandemônio na família.
    A mãe acaba tendo uma morte ridícula e cômica, na qual uma turista pula de cima de uma igreja para se matar e acaba esmagando a professora sistemática. Mas Amélie não se deixa abater; continua sua fase de crescimento, apesar de ver-se cada vez mais distante de seu pai, que aos poucos se isola do mundo.
    O longa é de uma sensibilidade sem tamanho. A simplicidade com que tudo é retratado encanta qualquer um. Cada personagem tem um pouco de seu íntimo revelado ao expectador, sendo expostos seus gostos e desgostos cotidianos. Isso permite que eles [os personagens] se aproximem de quem quer que esteja assistindo. Os pequenos prazeres da vida são destacados sobretudo por Amélie, que adora, por exemplo, enfiar a mão num saco de cereais; gosto este do qual confesso partilhar. Que jogue a primeira pedra quem nunca se deliciou mergulhando o braço num saco de sementes de girassol.
    É fascinante não só a história, mas também o modo como ela é retratada. Jeunet fez uso de ângulos dinâmicos e principalmente inusitados, além de uma edição de luz espetacular na qual determinadas cores se tornam mais realçadas e outras mais opacas.
    Não costumo falar de trilha sonora, mas deixar de mencionar a coletânea musical de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain seria um insulto à resenha. Yann Tiersen, compositor francês, recebeu renome internacional após desenvolver a trilha sonora do filme. As músicas são contagiosas e resgatam muito das últimas décadas do século XX na França, que é o cenário histórico-temporal no qual se passa o longa. Das cinco indicações a prêmios de cunho musical, as de Yann venceram quatro. A música tema, J'y Suis Jamais Alle, tocada diversas vezes ao decorrer das cenas, é conhecida até mesmo por quem nunca assistiu o filme. Deixo aqui o link para os que desejarem ouvi-la.
    E como possuo uma certa propensão a músicas tocadas inteiramente em piano, tomo a liberdade de disponibilizar junto ao texto minha melodia preferida da trilha sonora, Comptine D' un Autre Ete. Vou ser honesto e confessar que não faço ideia o que o título quer dizer, afinal, não falo francês. No entanto, ela não é minha favorita ao acaso. A música em questão permite que fechemos os olhos e esqueçamos de absolutamente tudo ao nosso redor. Bom, vou me abster de mais explicações, pois o som fala por si só:
Comptine d'un autre été : L'Après-midi by Yann Tiersen on Grooveshark     Talvez por tratar-se de uma comédia romântica — embora seja muito mais que isso — existe ainda o envolvimento platônico de Amélie com um rapaz tão misterioso (para não dizer estranho) quanto ela. É interessante assistir a evolução psicológica que a protagonista precisa passar para desafiar sua timidez e só então conseguir livrar-se da introversão para assim "correr riscos"; o que, no caso, significa revelar-se para o amado.
     Há muito mais para contar; claro que há. Um gnomo que viaja o mundo, um álbum de fotos picotadas de um homem suspeito de ser um "morto que não deseja ser esquecido", planos de vingança contra um maldoso vendedor de verduras de modo a fazê-lo pensar que possui distúrbios psiquiátricos, e muito mais. Tudo isso em nome da decisão que Amélie tomou de iniciar singelos, porém significativos altruísmos anônimos.
     Sempre vão existir aqueles que demonstram indiferença ao assistir o longa. Estas pessoas são, por linhas gerais, as mesmas que buscam somente filmes com muita ação e explosões; as mesmas que não sabem valorizar a delicada retratação da psique humana. Para absorver a essência da obra, é preciso observar e sobretudo compreender o olhar carregado de expressividade de Amélie, no qual gentileza e força se misturam para formar uma apaixonante incógnita.
     O Fabuloso Destino de Amélie Poulain definitivamente não é um daqueles filmes previsíveis que você assiste já sabendo o que vai acontecer. Segui a recomendação de muitos amigos e separei pouco mais de duas horas do meu fim de semana e, devo dizer, não me arrependi.

Incertas certezas
(e vice-versa)

    Talvez uma das maiores mentiras que nos são contadas quando crianças é a de que a ordem dos fatores não altera o produto. Os que dizem isto decerto nunca leram Machado de Assis, pois quem leu, bem sabe a diferença entre um autor defunto e um defunto autor. Existe ainda a questão do velho amigo que não é velho, além de muitos outros exemplos que não vêm ao caso. O título, por outro lado, não só vem ao caso como também segue o mesmo padrão de ordem/sentido.
    Estou cansado das pessoas que têm incertas certezas; das que arrogam verdades absolutas e para isto fazem o uso, no melhor dos casos, da voz alta, como se o volume pudesse dar alguma autoridade ao que dizem, ou até mesmo do ad hominem. Digo "no melhor dos casos" pois em outras épocas o instrumento de propriedade argumentativa fora a brutalidade em sua forma mais violenta. Afinal, a Terra era o centro do universo e dá-lhe Fogueira Santa a quem não aceitasse isso.
    De incertas certezas a História já está carregada e disto o mundo não precisa. Certas incertezas, por outro lado, são bem-vindas. Ter dúvidas é reconhecer nossa defeituosa humanidade e dar o primeiro passo em direção ao conhecimento. É preciso acolher as incertezas e buscar saná-las com humildade. Ter o benefício da dúvida é poder dizer "não sei" sem medo, pois somos humanos e estranho seria se tivéssemos tudo na ponta da língua.
    Arrisco que talvez todo o extremismo pudesse ser evitado se as pessoas levassem suas incertezas mais a sério; se colocassem a arrogância de lado por um minuto e cogitassem a natural possibilidade de estarem enganadas. Se assim fosse, teríamos menos sangue e mais humanidade nas páginas dos livros de História.