— CONTO —

Charutos


    13 de julho de 1884. A escuridão e a névoa fria ofuscavam os largos troncos das árvores próximas, como de costume. Faziam-se audíveis somente minha respiração gelada e meu tique vicioso de bater as unhas no suporte de minha maleta de couro, o qual eu segurava. À distância, o ruído das engrenagens começou a preencher o ambiente, ao que os trilhos à minha frente tremiam em compasso. Uma luz ao longe ficava cada vez maior.
    — Boa noite, senhor — disse o comissário quando a porta do trem abriu para me receber. — Permita-me, sim?
    Subi a bordo e o rapaz prontamente recolheu meu casaco. O interior da maquinaria se encontrava quente e aconchegante. Encaminhei-me até a cabine indicada pelo bilhete e cumprimentei Rita, minha elegante colega de trabalho, e Edmundo, um comerciante de objetos pouco convencionais com o qual fiz amizade ao longo daqueles últimos meses.
    Rita passava batom frente a um espelho de mão quando dei a ela um sinal com os olhos, indagando quem seria aquele senhor ao seu lado. Ele usava uma bengala, mesmo estando sentado, bem como um chapéu bastante antigo e um álbum de fotos no qual parecia estar absorto. No entanto, Rita parecia conhecer o misterioso senhor tanto quanto eu: respondeu meu olhar com outro de semelhante incógnita. O mesmo valeu para Edmundo, que deu de ombros em resposta a meu gesto.
    — Com licença — disse o velhinho, após alguns minutos. Seu tom de voz era cordial e simpático. — Algum de vocês poderia fazer a gentileza de emprestar-me um charuto?
     Abri minha maleta e fiquei satisfeito encontrar a seção de charutos cheia. Eu havia parado de fumar, então tinha charuto de sobra. Retirei um e o ofereci ao nobre senhor, com um sorriso.
    A partir daí, tornamo-nos amigos de cabine. Os dias se passaram e, noite após noite pegando o trem a fins de trabalho, nós quatro conversávamos sobre as coisas da vida e tudo mais. Aquele humilde senhor de bengala demonstrava, em suas palavras, ser deveras sábio e ficava feliz em contar-nos algumas de suas histórias.
     Em uma destas noites, após eu oferecer-lhe o charuto como era habitual, o senhorzinho apontou para uma das casas no meio da floresta pela qual passávamos todas as noites e contou que chegou a morar ali por muitos anos. Explicou que, apesar do sorriso que levava no rosto todos os dias, seu passado era carregado de uma tristeza maior do que muitas pessoas poderiam aguentar.
     — Já tive muitos inimigos, fosse no trabalho, fosse em outros lugares — contava ele, ao som dos ruídos abafados do trem andando sobre os trilhos. — Mas nunca cheguei a levar as inimizades tão a sério. Um dia, ao chegar em casa, encontrei minha mulher e meus dois filhos, um de sete e um de dez, ensanguentados no chão.
     Tanto eu quanto Rita e Edmundo estávamos horrorizados. Ele continuou, olhando para o chão e recordando o passado doloroso:
     — Desde então, decidi sair de lá. Esquecer tudo o que aconteceu. Recomeçar algo novo, talvez. — Fez uma pausa. — Mas por mais que eu tente fugir, acabo sempre passando aqui perto, percebe? É como se eu estivesse preso ao passado, de alguma maneira.
     Aquilo entrou na minha cabeça de um modo impressionante. A empatia falou mais alto e não pude deixar de imaginar-me no lugar deste senhor, chegando em casa e encontrando minha esposa e minha filha assassinadas.
    Na noite seguinte, dividi a cabine somente com Rita e Edmundo. O senhor de bengala não apareceu mais. O mesmo se repetiu nos dez dias seguintes, até que Rita, preocupada com o que poderia ter acontecido com o senhorzinho, decidiu que deveríamos visitar sua antiga casa. Deste modo, talvez poderíamos contatar algum dos vizinhos e descobrir seu novo endereço.
    Assim fizemos. Num sábado, antes do pôr do sol, descemos do trem num ponto próximo e caminhamos até a casa para a qual ele havia apontado. Era grande, até maior que as outras ao redor, mas suas janelas estavam todas fechadas e a poeira acumulava sob a porta.
    De porta em porta, batemos nas casas vizinhas e, de todas, fomos atendidos somente em uma.
    — O que vocês querem? — sibilou a mulher idosa que abrira somente uma fresta da porta para falar conosco. Suas rugas denunciavam sua idade extremamente avançada.
    — Senhora, procuramos um senhorzinho que se mudou daqui há alguns anos — explicou Rita, com o tom mais amigável possível para lidar com a rispidez do olhar de sua interlocutora.
    — Como é o nome dele? — questionou a senhora.
    Olhamos uns para os outros e então tentamos buscar na memória. "Ele não disse o nome", percebi após refletir sobre o assunto.
    — Não sabemos, mas ele costumava morar ali naquele sobrado — respondeu Edmundo, apontando para a casa em questão.
     A mulher fez uma expressão de quem é intolerante a tolices e disse:
    — Não diga asneiras, rapaz. A família que morava naquela casa morreu há cinquenta anos.
     — Sim, sabemos. Mas estamos falando do pai da família. Procuramos ele.
     O rosto da mulher parecia expressar a dúvida de estarmos loucos ou, na pior das hipóteses, estarmos fazendo-lhe uma brincadeira de mal gosto. Em tom soturno, disse, muito brevemente:
     — Ele se matou logo após descobrir que a família estava morta.
     — Mas...
    Olhei minha maleta. Absolutamente todos os charutos estavam lá.

— NOTA —
Aos que leram até o final, recomendo que releiam a última fala do senhor de bengala a fim de entender o que ele realmente quis dizer.