Rachel Sheherazade e as polêmicas

    Em 2011, bombava nas redes sociais um vídeo do comentário jornalístico transmitido pela TV Tambaú, da Paraíba, no qual uma figura até então desconhecida "revelava algumas verdades sobre a fantasia do carnaval", como foi postulado. No vídeo, havia críticas ácidas à comercialização da festa popular, ao uso indevido do dinheiro dos cofres públicos e ao governo hipócrita que investe pesado em infraestrutura (ambulâncias e policiamento) no carnaval quando faltam os mesmos investimentos para a população carente.

    A repercussão serviu como degrau de ascensão da jornalista, que logo ganhou nome e uma cadeira na bancada do SBT Brasil. Desde então, Rachel Sheherazade tem dado o que falar com suas opiniões e sua maneira pseudo-onisciente de arrogá-las.
    Talvez uma de suas maiores polêmicas tenha sido o comentário sobre a ação do Ministério Público para a retirada da frase "Deus seja louvado" das cédulas de real. No entanto, como este é um assunto bastante delicado que dá margem para uma longa discussão, limitarei-me apenas às considerações mais pertinentes e deixarei o restante para outro texto.
    Na próxima segunda-feira, no dia 24 de fevereiro de 2014, completará exatamente 123 anos a Constituição de 1891. Esta, porém, não é uma Constituição qualquer. É especial, pois foi ela que oficializou de fato a transição do Brasil Monarquia para o Brasil República. E talvez um dos aspectos mais notórios disto foi algo indispensável a qualquer democracia genuína: a divisão entre Estado e Igreja.
    Esta postura secular assegurou aos cidadãos que o Governo seria imparcial, garantindo assim a liberdade religiosa da qual precisavam tanto todas as pessoas que não eram católicas. É claro que, após praticamente 400 anos de dominância da Igreja Católica Apostólica Romana, nossa cultura continuaria marcada por seus costumes e tradições. Os dias da semana, o calendário gregoriano, os feriados, datas comemorativas e a própria inscrição na cédula. Desta forma, a laicidade do Estado ficou, pelo menos em maior parte, na teoria.
    O problema, penso eu, não está em haver tradições. As tradições constroem uma espécie de identidade cultural importante a todo tipo de sociedade. O problema está, na verdade, em impor suas tradições a todas as pessoas. Você pode decorar sua casa com belas imagens de santos e santas, como fazem os católicos, ou abster-se de comer carne suína, como fazem os judeus; e assim por diante. O que você não pode é querer forçar, através da lei, que todas as demais pessoas partilhem de seus preceitos.
    Estado laico não busca negar a religião de ninguém; muito pelo contrário! Quando a laicidade é verdadeira, a liberdade religiosa de todos é respeitada. E vale lembrar que não estamos falando aqui de Israel, mas sim do Brasil; um país pluricultural onde a diversidade é — ou deveria ser — há muito tempo vista como parte da dinâmica populacional.
    Só em 2010, a parcela não-cristã da população chegava a 13%. Pode parecer pouco, mas isso implica em mais de 25 milhões de pessoas. E considerando que a frase "Deus seja louvado" é uma clara referência à entidade bíblica, por mais que isso não incomode particularmente a minha pessoa, a presença da frase no dinheiro nacional acaba sim com o princípio da neutralidade do Estado em relação às religiões. Os que dizem que este tipo de análise é "falta de louça para lavar" não diriam o mesmo se a frase inscrita fosse "Alá seja louvado". É falta de empatia, de por-se no lugar do próximo e de ver não somente o que te desrespeita, mas o que desrespeita o próximo. E pelo que bem me lembro, pensar no próximo é justamente um dos ensinamentos mais importantes de Jesus; ensinamento este que muita gente anda esquecendo.
    O curioso é que, meses depois, Sheherazade se revoltou com as vaias ao Pastor Marco Feliciano e, em defesa ao líder religioso, argumentou que o Estado é laico e que "um homem não pode ser condenado por suas crenças, nem discriminado por causa delas". Defende que o pastor não possa ser vaiado por suas opiniões discriminatórias, mas não liga se o mesmo pastor em questão tentar aplicar tais opiniões no Congresso, impondo seus valores a todos os brasileiros, inclusive aos 25 milhões que não possuem as mesmas crenças que ele. Chega a ser estranho que a imparcialidade religiosa do Estado é defendida por Sheherazade apenas quando lhe convém.
    Mais engraçado ainda é que, no mesmo vídeo, Rachel insiste piamente na liberdade de expressão do pastor, mas não dá a mínima para a dos manifestantes. Do mesmo modo, fala em tolerância. Entretanto, a única "intolerância" com qual a jornalista parece importar-se é a das vaias; mas a intolerância de Marco Feliciano não parece ser problema. Aí pode. Para mim, isto não passa de dissonância cognitiva transvestida de discurso progressista fajuto.
    Um pastor pode sim expressar suas opiniões. É só não tentar forçar suas crenças goela abaixo da população por meio de intervenções legislativas, como Marco Feliciano faz. Além disso, vale pontuar que pastor nenhum está acima da lei. Suas pregações são asseguradas pela Constituição, sim, mas também estão sujeitas às mesmas regras de respeito à dignidade humana. Críticas se fazem não só bem-vindas como também necessárias.
    Fora isso, outro caso recente que provocou muito rebuliço nas redes sociais foi a declaração de Sheherazade do uso de uma suposta "legítima defesa coletiva" como justificativa para pessoas que fizeram justiça com as próprias mãos ao amarrar, despir e dar pauladas no "marginalzinho do poste", como ficou conhecido o adolescente suspeito de roubos.
    O comentário jornalístico teve duras consequências. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro chegou a divulgar uma nota de repúdio a Rachel Sheherazade e a indicar graves violações ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. A confusão foi tanta que a própria Rachel teve de retratar-se ao vivo, esclarecendo que é "uma pessoa do bem" e que é contra a barbárie.
    Quanto a este tema em específico, creio que caiba uma análise mais cuidadosa. As opiniões gerais em relação a tal declaração me preocupam muito, pois o que tenho visto é um maniqueísmo muito grande. De um lado, estão os que a apoiam completamente e de outro os que a demonizam. É preciso questionar sim; no entanto, é preciso cautela para não discordar de tudo cegamente.
    Rachel diz que o Estado é omisso, a Polícia desmoralizada e a Justiça falha. "O que resta ao cidadão de bem?", pergunta ela. Com efeito, esta é uma questão que não só pode como deve ser levantada. Até que o Governo recobre sua legitimidade cumprindo verdadeiramente seu papel para com a população, é natural que a as pessoas partam para medidas desesperadas. As truculências vistas nos noticiários ultimamente não são outra coisa senão reflexo destas medidas, já que a população não encontra outra saída para o problema. Não que as barbáries sejam aceitáveis ou corretas dum ponto de vista legal ("legítima defesa coletiva" é uma ova), mas se foi isto que Sheherazade quis dizer — sobre a falta de alternativas — quando alegou que os atos dos vingadores foi até compreensível, então concordo com ela neste ponto. Errado, abominável, mas compreensível.
    Porém, minha concordância com a jornalista se encerra aí. Ela continua: "E para o pessoal dos direitos humanos, eu lanço uma campanha: adote um bandido". Talvez fosse melhor pensar um pouco antes de sair por aí vomitando noções limitadas ao senso comum. Não somos nós quem devemos adotar os bandidos, e sim o Estado, promovendo oportunidades e fornecendo educação de qualidade. Quando não o faz, quem adota o bandido é o próprio crime. É como comentei no meu texto sobre a redução da maioridade penal: a própria necessidade de roubar — desencadeada pela falta de condições e de oportunidades dignas — coloca na cabeça destes indivíduos que o mundo é seu inimigo e se encarrega de ensiná-los como se virar. E fazendo uso da mesma moeda que a própria Rachel usou: recorrer ao crime para sobreviver é errado, mas é compreensível.
    Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. (...)
    Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom (mas não tão justo também...) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
Capitães da Areia (AMADO, Jorge)
Rachel insiste piamente na liberdade de expressão do pastor, mas não dá a mínima para a dos manifestantes.
— Não sejamos uma Sheherazade! Se há liberdade de expressão para um, que haja para todos!
    Por fim, é fundamental ter em mente que o progresso não poderá ser atingido através de demonizações — como se absolutamente todas as declarações da jornalista não prestassem, ignorando, por exemplo, sua crítica aos pastores que lucram às custas de seus fiéis ou seu elogio à banda Legião Urbana.
    Além disso, por mais reacionárias que sejam as opiniões de Sheherazade, ela tem todo o direito de compartilhá-las. Tomo a liberdade para ser clichê e citar Voltaire: "Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las". Querer calar a oposição é sinal de fraqueza e, como cheguei a dizer em outro texto, não precisamos de mais uma ditadura manchando a história do nosso país.