— CRÔNICA —

Tem coxinha?

    Enquanto os motoristas esperavam atrás do semáforo, os pedestres aproveitavam a deixa e atravessavam a rua sob o Sol escaldante do meio-dia. A poucos metros do cruzamento, uma pequena lanchonete de esquina estava aberta às pessoas que resolvessem se aventurar por aqueles salgados e bebidas um pouco duvidosos. Lá estava eu, degustando meu delicioso assado de palmito e bebendo regularmente meu refrigerante de cola (sim, "refrigerante de cola", porque pelo que me consta, ainda não estou sendo pago para fazer merchandising).
    Estava pensando sobre as coisas da vida quando de repente um diálogo surgiu e, sem pedir permissão, quebrou minha linha de raciocínio. Fui obrigado a prestar atenção.
    — Pois não? — perguntou a senhorinha por trás do balcão com um sorriso e uma grande simpatia na voz.
    A cliente observou os salgados expostos na vitrine. Seu blackpower não permitiu que eu visse seu rosto, mas a julgar pelos segundos de suspense, era altamente provável que estivesse procurando por algo.
     — Tem coxinha? — perguntou, por fim.
    — Nós temos enrolado de presunto e queijo, esfirra fechada, empada de palmito, croquete e assados de carne, queijo e brócolis — respondeu, ainda com um sorriso no rosto.
    — Tem coxinha? — repetiu a mulher. Seu tom era exatamente igual ao de quando perguntou pela primeira vez. Uma grosseria disfarçada em simplicidade. Aparentemente não fazia questão de rodeios.
    A balconista, que, dado a simplicidade do estabelecimento, também era a cozinheira, respondeu que não.
    E assim, sem mais nem menos, a mulher que desejava tão arduamente uma coxinha virou-se sobre seus próprios calcanhares e saiu. Nem se deu ao trabalho de ser cordial o suficiente para inventar alguma desculpa ou para dar satisfação. Não havia encontrado o que viera procurar, então saiu. Objetiva até demais.
    O semblante da atendente não era de pedra. O sorriso desmanchou e ela teve estampado em seu rosto um gigante ponto de interrogação. Diante daquela incógnita em seu olhar, me deparei com a seguinte pergunta: que expressão era aquela?
    Indignação? Por ter acordado cedo, ao som incômodo do despertador às cinco da manhã; deixado o marido, os filhos e a casa para ajudar na renda da família; preparado a espátula e a frigideira; vestido o uniforme e o sorriso matinal; e tudo isso para quê? Para alguns poucos merréis e ocasionais desaforos? Fritara os outros salgados com tanto carinho! Não era justo que fossem descartados assim tão facilmente, tudo em prol de uma mera coxinha.
    Ou talvez não fosse isso. Talvez a senhora estivesse, assim como eu, apenas intrigada. Qual seria o motivo de a cliente de blackpower e brincos de lantejola desejar somente e tão somente uma coxinha? Teria ela acordado e decidido que não descansaria enquanto não encontrasse um suculento pedaço do salgado em questão? Estaria numa espécie de dieta exclusivamente à base de massas fritas recheadas com frango desfiado? Ou estaria passando por uma crise existencial, sendo seu único remédio as coxinhas? Não sei e provavelmente nunca saberei. A mulher se foi para sempre.
    Resta ainda a pergunta mais importante: como eu me senti em relação a isso tudo? Teria eu coragem de entrar numa lanchonete com a mesma postura determinada e expressão irredutível que a mulher tinha, numa busca tão restrita e importante como aquela? Afinal, não encontrar um prato genuinamente brasileiro numa lanchonete limeirense, posto que Limeira fica no Brasil, seria devastador para o meu emocional. Seria preciso reunir coragem para encarar a atendente nos olhos, mesmo estando disposto a sair do local com a mesma facilidade com que entrei, caso não houvesse a tal da coxinha.
    Em última análise, questiono-me sobre como teria sido se os acontecimentos tivessem se decorrido de forma diferente. Se a mulher, encarando a indisponibilidade do salgado no momento, decidisse optar pela empada de palmito, assim como eu. O que aconteceria? É um jogo de hipóteses, é claro, mas penso que o sorriso da atendente continuaria lá, talvez ainda maior do que sua boca pudesse suportar. Seu trabalho seria certamente mais gratificante. Entretanto, eu não estaria aqui, me metendo a escrever sobre tantas reflexões, porque eu não as teria tido. Em lugar desta crônica, você seria obrigado a ler um texto cansativo sobre os males do refrigerante de cola e os motivos que nos levam a continuar insistindo em bebidas cancerígenas, ou coisa do gênero, por exemplo.
    Nunca pensei que uma coxinha poderia ser de tamanha utilidade.

— NOTA —
Devo agradecer à pessoa que me inspirou a escrever esta crônica. Creio ser desnecessário citar nomes pois a pessoa em questão se identificará com o questionamento profundo de tudo e de todos, tal como há no texto. Eu gostaria de ter usado a imagem de uma coxinha para ilustrar a publicação, assim como costumo fazer, mas não o fiz por respeito ao que ela [a pessoa] chama de "honestidade textual". E só por curiosidade, a cena retratada realmente aconteceu. Dá-lhe coxinha!